Primeira Pessoa
Alejandro Aravena: «As cidades têm um papel importante na correcção de desigualdades.»
Ana Vaz Milheiro

«Quando fui para Harvard, as pessoas achavam que a habitação social não era arquitectura», lembra o arquitecto Alejandro Aravena nesta entrevista dada, para a Electra, à arquitecta e investigadora Ana Vaz Milheiro. Distinguido com o Prémio Pritzker, em 2016, é conhecido mundialmente pela originalidade da sua obra, na qual a relação entre arquitectura, habitação, sociedade e natureza assume uma importância capital. Nesta conversa, pontuada por temas que têm estado presentes na actividade plural que tem desenvolvido, Aravena fala também da experiência de projectar e construir em Lisboa.

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© João Carmo Simões

Alejandro Aravena nasceu em Santiago do Chile em 1967, e não consegue precisar quando é que se apercebeu de que era arquitecto. Esse momento esteve certamente relacionado com o seu trabalho nos programas de arquitectura social. De facto, se se tivesse de usar uma expressão para o descrever, seria «habitação a preços acessíveis». Esta associação faz todo o sentido para alguém que está convencido de que a habitação pode ser usada como ferramenta contra a pobreza. O seu reconhecimento internacional chegaria com o complexo de habitação social Quinta Monroy, em Iquique, no Chile, que permitiu a permanência de famílias que residiam informalmente nessa área. Foi projectado no seu atelier de arquitectura — Elemental — em 2003. Licenciou-se no Chile, em 1992, e estudou em Veneza no ano seguinte. Foi professor de arquitectura na Universidade de Harvard até 2005 e em 2016 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Pritzker. No mesmo ano, foi curador da secção de Arquitectura da Bienal de Veneza, onde lançou o tema «Reporting From the Front», expressando a sua convicção de que «o avanço da arquitectura não é um objectivo por si só, mas uma maneira de melhorar a qualidade de vida das pessoas». É uma convicção que reafirma mais uma vez nesta entrevista.

O arquitecto chileno, a passar por Lisboa numa das suas visitas de acompanhamento à construção do prolongamento do edifício-sede da EDP, na Rua D. Luís I, explicou que ser arquitecto também passa por «ter gratidão pelas oportunidades que as pessoas dão», e que as comunidades urbanas também ajudaram a determinar prioridades: «Não nos podemos dar ao luxo de perder esse conhecimento.»

ANA VAZ MILHEIRO  Quando chegou a Lisboa, o que conhecia da cidade? De que maneira acha que o seu projecto do edifício da EDP entra em diálogo com a cidade?

ALEJANDRO ARAVENA  A minha relação com Lisboa começou muito antes do projecto, como estudante de arquitectura em 1991. Vim de um país com pouca arquitectura e Portugal, em geral, é uma referência para estudantes de arquitectura. Há uma massa crítica de arquitectos que é difícil encontrar em qualquer outro lado, excepto talvez no Japão e na Suíça. As áreas edificadas são o nosso «professor». Em Portugal, isso vem de dois lugares diferentes: chega-nos arquitectura de alta qualidade da história e da herança, mas também da contemporaneidade. Vir a Lisboa é como vir visitar os nossos «professores». Na verdade, chega-se cá e sente-se a pressão, o nível médio de arquitectura é muito alto. Normalmente, trabalhamos a partir de escritórios em sítios sem arquitectura. Nós vamos lá para deixar algo com interesse arquitectónico. Não me refiro apenas à componente artística, mas a pôr lá estruturas e infra-estruturas onde não existiam nenhumas. Trabalhar aqui é exactamente o oposto. Estamos numa parte específica de Lisboa onde tudo importa: não só os edifícios em volta, mas a geografia também, como o rio ou as colinas. Não chegamos cá sabendo o que gostaríamos de fazer. Adiamos até que tenhamos ouvido, compreendido e estudado a questão, quais são as necessidades e expectativas do cliente, qual é o ambiente circundante. Planeamos só depois de a compreendermos e de a termos desenhado. Não partimos para a resposta sem ter feito algum trabalho criativo. E esta questão não é adquirida, é preciso construí-la, o que já é por si um acto criativo. Estas três camadas sobrepõem-se até mesmo antes da primeira abordagem ao projecto.

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"Vim de um país com pouca arquitectura e Portugal, em geral, é uma referência para estudantes de arquitectura. Há uma massa crítica de arquitectos que é difícil encontrar em qualquer outro lado, excepto talvez no Japão e na Suíça."

AVM  Estou muito interessada na sua referência a sítios «sem arquitectura»: a ideia de uma paisagem sem arquitectura. O Alejandro vem do Chile, um país que foi colonizado pelos espanhóis. Uma atitude pós-colonial pode levar-nos a pensar que até mesmo num ambiente precário existirá algo que é arquitectura.

AA  Começarei por dizer que essa é uma questão muito filosófica, ou seja, que se trata de um facto. Há mais natureza do que história. E antes de falar de arquitectura, porque se torna algo muito discutível, falarei de construções. O Chile é um dos países mais sísmicos do mundo. Em 1960, tivemos o maior sismo alguma vez registado, de 9.6 na escala de Richter. Em 2010, foi de 8.8. A natureza tratou do que tinha a tratar, abanou tudo e certificou-se de fazer desaparecer o que não respeitava o ambiente. Aqui, o tempo é mais importante que a geografia. Temos de ler ou falar numa língua diferente: a língua da natureza. Tem-se debatido muito este tema no contexto da crise climática. Refiro-me particularmente às comunidades Mapuche, indígenas do sul do Chile, em guerra com o próprio país, que agora se encontram numa zona de conflito. Antes sequer de entrar nos problemas políticos, legais ou militares desta batalha, diria que a principal diferença é que o mundo ocidental pensa em termos de pertences. Para os Mapuche, a palavra-chave é «pertencer», o verbo. Pertencemos à natureza e não o contrário. O maior debate entre culturas autóctones e o mundo ocidental existe porque, para as primeiras, a natureza é um ser. Esse ser tem de ser compreendido. Por isso é que podem dizer que a natureza está doente ou a sofrer. Para o mundo ocidental, a natureza é uma coisa, logo, podemos operar sobre ela. O que é interessante no caso do Chile é estarmos no cruzamento de muitas camadas que se sobrepõem. Primeiro mundo e terceiro mundo: o Chile é ambos. Natureza como ser e natureza como coisa: somos ambos. É isso que quero dizer quando falo de sítios sem arquitectura.

"Quanto mais conseguirmos adiar o envolvimento das máquinas no nosso ambiente, mais positivo será o nosso contributo para a crise que vivemos. A sustentabilidade, no fim, é nada mais que o uso rigoroso do bom senso."

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AVM  Disse que em Lisboa o tempo é mais importante que a geografia, mas estamos numa cidade em que ela é tudo. Temos o rio, depois o clima mudará e o nível do mar também… E logo a nossa cidade, que está construída por cima de água. Esta ideia de que o tempo é mais importante que a geografia fazia parte da sua questão?

AA  Absolutamente. E veio na forma de um plano-director que temos de seguir. Deixe-me falar de um aspecto que pode parecer poético ou inofensivo, isto é, que não importa a ninguém. Trata-se da luz: por um lado, a maneira como muda depende do tempo que passa e, por outro, ela é um facto da natureza. Antes da dimensão mais artística da luz, é uma questão de orientação, de ganhos e perdas de energia. Pode ficar demasiado quente para trabalhar no Verão, ou demasiado frio no Inverno. Quanto mais conseguirmos adiar o envolvimento das máquinas no nosso ambiente, mais positivo será o nosso contributo para a crise que vivemos. A sustentabilidade, no fim, é nada mais que o uso rigoroso do bom senso. Se tivermos bom senso, já resolvemos pelo menos 90% do problema da sustentabilidade. Isso explica que a massa térmica neste edifício se orienta nas direcções certas ou que há lugares expostos à luz natural e assim não temos de instalar luz eléctrica. Depois, precisamos de estores, porque de outro modo a exposição directa à luz do sol impossibilitará o trabalho. Ajustar este aspecto é cruzar o tempo com a geografia.

Tivemos um constrangimento legal que foi uma resposta à geografia. Pensámos que era o tipo de coisa que um arquitecto gostaria de resolver, pôr as suas actividades a servir o bem maior. Este cliente em específico entendeu perfeitamente que estava a contribuir para a cidade. Será que podemos fazer um edifício que seja um só edifício com funções internas e, ao mesmo tempo, dois edifícios para que a sua massa não impeça a vista para o rio? O desafio era dobrar o rés-do-chão. Criámos uma ligeira elevação, é como se nesta dobra houvesse uma pequena colina. De forma muito subtil, sobe-se e desce-se, como as colinas à volta. No entanto, por debaixo dessa dobra temos uma ligação. O edifício pode funcionar como um só. É outra amostra de como um ambiente pleno de constrangimentos, provenientes de camadas acumuladas da história, é concomitantemente uma operação que entende que a geografia neste sítio específico importa.

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"A palavra liberdade é muito importante. Usei-a muito cuidadosamente durante o discurso nas Nações Unidas, onde o Pritzker me foi entregue. A liberdade é sobre fazer escolhas."

AVM  Podemos abordar a materialidade dos edifícios e como se relaciona ela com o contexto social mais abrangente?

AA  Diria que o desafio para a arquitectura é compreender que a maneira como opera no mundo tem de fazer parte de uma conversa muito maior, que vá além dos interesses dos arquitectos, ou o preço que pagamos é a irrelevância. Hoje em dia, uma das coisas que mais importam é a crise ambiental. Desse ponto de vista, a nossa escolha foi a massa térmica. Os arquitectos de antigamente respondiam a esta questão distribuindo a massa térmica pelo perímetro. A partir do momento em que se tem uma parede de vidro, tem-se um efeito de estufa. E depois o consumo de energia é de 120 kW/m2 por ano… Quando a fachada é uma parede com janelas, que é a maneira como se fazem as coisas há séculos, o consumo de energia baixa para 40 kW/m2 por ano. Trata-se de uma poupança de 300%. Claro está que se pode tratar o material de forma a que tenha alguma qualidade emocional e sensível para capturar a luz de Lisboa de maneira relevante. As pessoas podem dizer que o cimento deixa uma pegada de carbono nada desejável. Mas se se vai gastar energia, que se certifique de que só se gasta uma vez. Assim, não se terá de alterar a fachada durante séculos. Esta é uma das lições da arquitectura antiga. As cidades são medidas pelo que conseguimos fazer com elas de graça. É uma operação que nivela o campo das desigualdades, um dos maiores desafios das nossas sociedades. As cidades têm um papel importante na correcção das desigualdades, porque podem funcionar como atalhos para melhorar a qualidade de vida sem ter de se pagar por elas, sem se ter de depender do rendimento. O espaço público é uma oportunidade arquitectónica poderosa.

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