Metropolitano
Espaço quântico: privatização e o fim da privacidade
Jack Self

A relação entre o que é da ordem da esfera pública e o que é da ordem da privacidade alterou-se completamente no nosso tempo, à imagem do que se passa na relação entre o indivíduo (essa invenção do Iluminismo) e a sociedade.

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A cozinha de Andy Warhol fotografada por David Gamble para a Sotheby’s

 

Há geralmente três tipos de imóveis Airbnb. Primeiro há as «casas a sério», ocupadas por moradores de longa duração e apenas alugadas de vez em quando. Depois há os imóveis para investimento, ocupados apenas de vez em quando pelos seus proprietários e alugados frequentemente de modo a pagar o empréstimo ao banco. A terceira categoria — que aqui não nos interessa — consiste em imóveis que são apenas hostels ou hotéis disfarçados.

As «casas a sério» estão sempre atulhadas daquilo que Philip K. Dick apelidou de kipple — aqueles afectos pessoais que, juntos, formam o lixo e os detritos insignificantes que se vão acumulando ao longo do tempo. Fotografias de família carcomidas, ímanes de frigorífico lascados, talheres desirmanados, abundantes quantidades de pauzinhos chineses já usados e sacos de plástico. A mobília, marcada pelas cicatrizes bélicas de mudanças passadas e décadas de uso, amontoa-se desajeitadamente, sugerindo que os moradores já não são capazes de lhes ver bem as formas. A desordem esconde-se em todos os cantos possíveis, comunicando um certo pragmatismo: a casa pode ou não ser atraente, mas os guarda-chuvas estão exactamente onde se esperava que estivessem. Tal como descobrir os gostos de um novo amante, estes lugares vêm sempre repletos de bagagem, regras e idiossincrasias. «Se os canos de água quente começarem a fazer barulho», sugere um post-it, «basta fechar um pouco a torneira».

A segunda categoria, os «imóveis para investimento», são sempre ligeiramente inquietantes — dão a impressão de que um indivíduo nervoso e alienado transpôs o interior de um Starbucks para um apartamento cenografado. A mobília, nos casos em que não é do Ikea, é inchada. Os enormes cadeirões em veludo azul tentam compensar a ausência de kipple, mas só acentuam ainda mais a falta de vida. Estes interiores são muitas vezes «bizarros», empregando chavões sobre decoração ou arquitectura vendidos em programas de televisão sobre como renovar a casa: cadeiras Luís XV sóbrias com um toque irónico em imitação de leopardo cor-de-rosa; molduras douradas a cair aos bocados, penduradas na parede e a transbordar de mensagens de motivação (quase miméticas) recortadas de revistas; o inútil quadro preto onde escrever coisas, uns corações num canto, uma mensagem não específica mas amistosa de boas-vindas e a palavra-passe Wi-Fi. Na medida em que se esforçam por parecer descontraídas e acolhedoras, mas ao mesmo tempo profissionais e modernas, tratam-se sempre de decorações fechadas. Não se lhes pode acrescentar novos objectos nem retirar os que lá estão.

Com alguma altivez, o imóvel para investimento converge no sentido da estética da «casa a sério». Ao mesmo tempo, a casa a sério avança na direcção do imóvel para investimento. As políticas de estandardização do Airbnb ditam como, e de que ângulos, se podem fotografar os quartos, e até sugerem certos objectos ou esquemas cromáticos que poderão melhorar o look de uma propriedade. O objectivo de tudo isto é oferecer ao utilizador do site ou da aplicação uma comparação de imagens mais legível. Dito de outro modo, o esbatimento das linhas entre a aparência da casa e a aparência do imóvel para investimento está concebido de modo a tornar imóveis cultural e geograficamente diversos passíveis de troca — em todos os sentidos, homogéneos e homotópicos.

A confluência destas duas categorias poderá ser apelidada de «casa de investimento» e apresenta condições arquitectónicas bastante curiosas e ambíguas. Logo em primeiro lugar, a parcelização do espaço pessoal. Na casa de investimento é comum ver marcadores específicos delineando as fronteiras do privado: o armário do quarto está vazio, como num hotel, à espera das roupas que nunca lá iremos arrumar. Mas a gaveta de baixo terá um autocolante vermelho ou um bilhete pedindo, ou confiando, que o ocupante temporário não perturbe este último espaço privado. Tal atomização da privacidade é apenas a redução mais recente num processo de mercantilização doméstica que começou com o advento da propriedade imobiliária em massa que se seguiu aos anos 70. No entanto, seria errado pensar que a tecnologia do Airbnb é a única responsável pelo desaparecimento da alma da casa. Em vez disso, este é apenas um modelo facilmente aproveitado entre um sem-número de tecnologias informáticas de troca baseadas na imagem — todas elas tendo por objectivo tornar cada pormenor das nossas vidas e das nossas personalidades comparável e, logo, fungível.

Pelo menos entre os liberais radicais, a casa sempre representou o auge da liberdade pessoal. Na rua, a liberdade de expressão e a normal cortesia são respeitadas, enquanto a força letal sustenta a santidade da propriedade privada. Mas o interior Airbnb, com a sua privacidade segmentada, é uma casa privada tornada acessível ao público por uma taxa. Isto expõe de forma directa a relação entre gosto pessoal, estatuto socioeconómico e rentabilidade, explicando o porquê de a casa genérica ser tão ideologicamente desconfortável. É simultaneamente tanto pública como privada, mas nem pública nem privada. Esta condição ambígua produz aquilo a que chamo espaço quântico.

De facto, as tecnologias de informação baseadas em imagens ou ícones, que usamos cada vez mais para mediar a nossa percepção da realidade, estendem esta condição de indeterminação muito além do Airbnb. A chamada de vídeo que traz amigos num café no estrangeiro directamente para o espaço do quarto encena uma abstracção da privacidade pública. De igual modo, o previsível quadro de referência embutido na multiplicidade da selfie transpõe o turista numa terra estranha para um espaço familiar: para um estado de publicidade privada. A impossibilidade de se estar completamente a sós (existe sempre a ameaça do alerta SMS para uma chamada às armas) é espelhada apenas pela impossibilidade de se ser verdadeiramente parte do grupo (não conseguimos literalmente ouvir-nos uns aos outros por cima do som das nossas playlists personalizadas). À escala da cidade, a progressiva privatização do espaço público é complementada pela extensão da vigilância do governo (cujo alcance foi arrepiantemente revelado por Edward Snowden) para a privacidade das nossas casas, discos rígidos, histórias e cabeças.

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*Tradução de Moira Difelice