Passagens
«E se os modernos estivessem enganados? Se não tivessem talento?»
Éric Marty

Já no final da sua vida, Barthes escreveu uma frase que revela algum cepticismo em relação à literatura moderna, cujas experiências mais extremas tinham sempre suscitado a sua adesão ou, pelo menos, o seu interesse. Éric Marty, editor da obra completa de Roland Barthes, comenta esta frase e explica o contexto em que ela nasceu.

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Roland Barthes, por Sophie Bassouls, 1978

 

A 25 de Agosto de 1979, escreve Roland Barthes: «[…] retomo aliviado as Mémoires d’outre tombe, o verdadeiro livro. Sempre o mesmo pensamento: e se os Modernos estivessem enganados? Se não tivessem talento?».1

Barthes escreveu estas frases, mas não as publicou. Morto pouco mais de seis meses depois, a 26 de Março de 1980, não teve tempo de fazer alguma coisa com elas. De fazer o quê? Tentaremos compreendê-lo um pouco mais à frente. Apesar disso, chegaram até nós, tendo sido incluídas numa recolha póstuma elaborada pelo seu amigo e editor François Wahl (1925–2014), publicada com o título Incidents em 1987, ou seja, sete anos depois da sua morte.

Trata-se de um estranho livro constituído por dois textos muito breves, um sobre «La lumière du Sud-Ouest», o outro, intitulado «Au Palace ce soir», sobre uma discoteca, os quais Barthes escreveu para dois periódicos, o primeiro texto para o diário comunista L’Humanité, o segundo para uma revista de luxo dedicada à moda, Vogue Hommes. Incluía ainda um inédito, uma sucessão de fragmentos muito pessoais sobre Marrocos, «Incidents», que dava assim o título ao conjunto. Tudo é singular neste curioso objecto, desde a justaposição de dois textos íntimos, «Soirées de Paris» e o referente a Marrocos, e de dois textos decididamente «êxtimos», o sobre o Sudoeste e o dedicado ao Le Palace, até aos próprios locais de publicação dos dois artigos, num caso o L’Humanité, o jornal dos proletários, no outro a Vogue Hommes, a revista do capitalismo e do consumo hedonista. Pela minha parte, vejo nesta dupla improvável e inesperada os primeiros sinais do pós-modernismo, da corrosão das grandes unidades ideológicas, sociais, económicas e culturais que começa a manifestar-se na Europa neste início dos anos 1980, fim da modernidade.

Os leitores de Barthes ficaram chocados. Tiveram a impressão que François Wahl utilizava esses artigos anódinos (os do L’Humanité e da Vogue Hommes) para orquestrar uma dupla traição ao seu amigo Barthes. A primeira traição relacionava-se com os seus hábitos, uma vez que, tanto nas «Soirées de Paris» como no texto sobre Marrocos, se podiam ler confidências, por vezes muito cruas, sobre a sexualidade gay de Barthes — uma espécie de outing, ou sobretudo de «coming out contra a sua própria vontade», uma vez que Barthes nunca se tinha pronunciado, pelo menos de forma explícita, sobre aquilo a que hoje chamaríamos a sua «orientação sexual». A segunda traição aparentava uma gravidade semelhante, dado que Barthes, em várias passagens das «Soirées de Paris», parecia condenar a «modernidade», os «modernos», todo esse movimento de avant-garde do qual tinha podido passar por um dos chefes de fila, um dos comentadores ou um dos companheiros de percurso. Traição mais pérfida, uma vez que não apenas Barthes atacava os modernos, que nesse começo do fim do século se encontravam já numa situação complicada, como podia surgir como uma espécie de hipócrita ou de Tartufo da modernidade.

Este dia, ou antes esta soirée — dado que todas as páginas deste «diário», com excepção da última, são relativas a soirées —, no termo da qual Barthes concluiu com severidade a propósito dos modernos «Se não tivessem talento?», toca-me e diz-me directamente respeito, uma vez que me refere no seu início: «Simplesmente, no Flore, com Éric M., onde pedimos salsichas, ovos quentes e um copo de Bordeaux.»2

Barthes relata a soirée que passámos os dois num local muito simbólico da vida intelectual, o Flore, onde Sartre, segundo parece, escreveu L’Être et le Néant, onde Barthes ia muitas vezes, e o qual se tornou entretanto um café bastante vulgar, completamente repleto de turistas. Uma bela mise en abyme se desenha nesse texto, uma vez que, depois de referir que estivemos a falar sobre o diário íntimo, Barthes diz que me dedica o texto que acabou de escrever para a Tel Quel, «Délibération», o qual precisamente aborda a questão do diário, sendo o todo reunido num diário propriamente dito, «Soirées de Paris»…

De regresso a casa, Barthes, como todas as noites, lê um pouco de alguns livros antes de adormecer, «modernos» portanto, e, depois de os ter fechado, as Mémoires d’outre-tombe, «o verdadeiro livro».

Talvez seja necessário referir os dois livros que Barthes abriu, e depois fechou, antes de pegar naquele que relê sem cessar, o de Chateaubriand. O primeiro é designado pelo nome do autor (Navarre), o segundo apenas pelo título, M/S. Tratam-se de modernos, no sentido histórico ou estético? De modo algum. No caso do primeiro livro, trata-se de Yves Navarre (1940–1994), escritor absolutamente tradicional em termos de escrita, cuja única audácia foi ter redigido romances gay. Aquele a que Barthes se refere intitula-se Le Temps voulu e narra uma história de amor bastante convencional entre um professor de letras e um homem muito jovem. Mais misterioso é o outro livro, M/S, mencionado sem o nome do autor. É hoje extremamente difícil, mesmo praticamente impossível, encontrar a mais pequena informação na Internet sobre esse livro. Não se consegue encontrar o nome do seu autor. Trata-se de Christian Pierrejouan. O seu romance é a narrativa de uma relação sadomasoquista homossexual muito radical. Barthes refere-se-lhe uma segunda vez na entrada de 5 de Setembro de 1979, sempre sem mencionar o nome do autor, a propósito de François Wahl, que foi o editor entusiasta do livro (ao ponto de um boato pretender que o teria escrito, o que não era o caso). Mas também aí, apesar do carácter extremo das práticas sexuais relatadas, não se trata de forma alguma de uma obra moderna, de um «texto», de uma escrita textualizante, modernista. Recordo-me que o livro, que ocupava o lugar de honra na mesa de cabeceira do quarto de Barthes, tinha sido forrado com papel negro muito opaco, de modo a que a empregada doméstica não pudesse ver a contracapa da obra, que apresentava um resumo da sua intriga.

Se as frases «antimodernas» de Barthes não podem ser contestadas ou minimizadas, elas devem ser lidas cum grano salis. Ser lidas, talvez, como a crítica dos modernos feita por um moderno.

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Finais dos anos 70: a farda do Palace, desenhada por Thierry Mugler

 

O mais surpreendente é que o julgamento muito severo de Barthes sobre os modernos — julgamento que, apesar de tudo, contém um ponto de interrogação — se segue à leitura de dois livros que não ilustram de forma alguma esse julgamento, nem o preparam. Como se esta ideia — «[…] e se os modernos estivessem enganados? Se não tivessem talento?» — surgisse de súbito, bruscamente, numa sequência de pensamentos sem nexo. É, na verdade, Chateaubriand que suscita esta reflexão, num efeito de ricochete. O génio de Chateaubriand parece ter um efeito de metalepse, um efeito a posteriori. O outro paradoxo relaciona-se com o facto de esta ideia parecer familiar a Barthes, ocorrendo-lhe frequentemente («Sempre o mesmo pensamento: e se […]»), mas, ao mesmo tempo, ela não ser afirmada, mas antes atenuada por um duplo ponto de interrogação que deixa a resposta em suspenso. Mas é verdade que a própria pergunta induz uma resposta afirmativa.

Parece-me que a verdadeira questão não consiste em perguntar porquê e de que modo Barthes podia pensar assim, ou se o pensava realmente, ou mesmo se está a ser verdadeiro. Ele pensa-o e tentar minimizar esse pensamento ou, pelo contrário, sublinhá-lo brutalmente, sem qualquer nuance, são duas posições igualmente falsas. Nesse mesmo ano, Barthes escreve sobre o artista plástico Cy Twombly (na verdade, considerado um pós-moderno), e ilustra La Chambre claire com diversas fotografias, entre as quais uma de Robert Mapplethorpe que representa Philip Glass e Robert Wilson, dois ícones modernos, enquanto uma outra retrata Mondrian. Seria abusivo, como alguns o fizeram, mascarar Barthes de conservador ou de clássico.

A verdadeira questão que é necessário colocar é a de saber como e porquê Barthes escreveu tais frases. É toda uma outra abordagem, já não a de entrar na cabeça de Barthes e de o fazer dizer coisas que não disse, mas antes a de colocar a questão em termos de escrita, em termos de destino da escrita. Ora existem, desde há um certo tempo, algumas respostas e esclarecimentos. Nesse Verão de 1979, Barthes concluiu La Chambre claire, o seu último livro, tendo-o terminado exactamente no dia 3 de Junho. Tem nessa altura um novo projecto, extremamente ambicioso, que a morte o impedirá de levar a bom termo, intitulado Vita Nova. Trata-se de uma espécie de romance, em todo o caso de uma obra romanesca, que é a «narrativa» de um acesso a uma outra vida, ou a uma outra escrita. Publiquei os seus planos, oito folhas, no final das OEuvres complètes, bem como fragmentos no Album do centenário, editado pela Seuil em 2015. É uma obra de mutações sucessivas, cujo ponto de partida é a morte da sua mãe, ao longo das quais o narrador atravessa etapas iniciáticas que convocam o «Mundo», o dos prazeres, dos divertimentos, das figuras de iniciadores, dos mestres, dos amigos, «o homem jovem desconhecido», os anti-iniciadores, o «militante» e, no meio de tudo isto, a «literatura» como experiência, como decepção, como decisão.

Ora «Soirées de Paris» tem o seu lugar neste conjunto, com o título «Vaines Soirées» ou «Telles étaient mes soirées».3 Da obra deveriam ainda constar o «Journal de Deuil» e «Incidents»4, bem como outros textos. Não se deve por isso ler o diário constituído por «Soirées de Paris» verdadeiramente como um diário, ou seja, como um espaço espontâneo e liberto da escrita. Por outro lado, em «Délibération», esse texto sobre o diário íntimo que Barthes me dedicou, ele condena-o como forma passada, o que significa que considera o diário com um olhar e a partir de um ponto de vista modernos.

Trata-se assim de um «texto», que tem uma função dialéctica no interior de um conjunto no qual a soirée é abordada como momento existencial, como momento de escrita, numa perspectiva assumidamente irónica ou crítica. Abordada como momento vão, que tem por destino ser ultrapassado pela Vita Nova futura. A soirée é «vã» dado que é a repetição do mesmo, estando submetida à opinião, sempre disponível para ser revertida no seu contrário. Vã por oposição à verdade que a Vita Nova deve revelar.

É por isso que, se as frases «antimodernas» de Barthes não podem ser contestadas ou minimizadas, elas devem ser lidas cum grano salis. Ser lidas, talvez, como a crítica dos modernos feita por um moderno, como o jogo de um moderno consigo próprio, jogo interrogativo que não convoca nenhum texto em particular, uma vez que o único texto que conta é aquele que está a ser escrito. Ethos da modernidade.

*Tradução de João Reis

1. «Soirées de Paris», Incidentes, tradução de Tereza Coelho e Alexandre Melo, Lisboa: Quetzal, 1987, p. 64.
2. Ibid, p. 63.
3. OEuvres complètes, tome V, Paris: Seuil, 2002, pp. 1011 e 1014.
4. Sobre a arquitectura de Vita Nova, ver Roland Barthes, Album, Inédits, correspondances et varia, Paris: Seuil, 2015, pp. 371–372.