Planisfério
Sacudir espíritos
Pedro Gomes e Diogo Simões

Neste ensaio-reportagem, o músico, programador e editor Pedro Gomes fala com quatro artistas que nos aproximam do Rap Crioulo, contando-nos histórias que se passam em bairros da Grande Lisboa e da Margem Sul. Este trabalho dá-nos também a conhecer a campanha fotográfica realizada para a Electra pelo fotógrafo Diogo Simões. O encontro das palavras com as imagens é aqui atravessado pelos sons ritmados de uma música que não tem cessado de se afirmar e expandir.

Esta peça foi desenhada a partir de quatro artistas — Ghoya, Mynda Guevara, Né Jah, Primero G —, partes fundamentais do rap crioulo, para contar algumas das várias histórias da Grande Lisboa e da sua Margem Sul. Partiu-se de cada um deles, dos bairros onde de alguma forma cresceram, e dos interlocutores por ela e eles sugeridos, para criar uma cartografia do que tem sido o seu quotidiano local ao longo do tempo depois de Abril, e que retrata a realidade indivisível da música que fazem. Foram estes quatro artistas que participaram num concerto e conferência a 5 de Julho de 2020, dia em que se celebrou a independência de Cabo Verde, numa declinação do programa Terra Irada, que desenvolvi para o MAAT nesse ano invulgar. Ao receber de muito bom grado o convite da Electra para escrever uma peça, foi instantâneo querer continuar a abordar este assunto neste veículo.

O rap crioulo nacional, que se forma na década de 90, é uma afirmação programática e natural da língua cabo-verdiana dentro do panorama do rap e do hip hop em Portugal. É uma história bem longa, e que finalmente começou a ter, em anos muito recentes, outro tipo de aceitação e difusão. Por questões pluralistas, micro-geracionais e etárias, estão aqui quatro figuras que, para cada época em que surgiram, foram afirmando novas maneiras de ser aqui, usando língua, paridade e reivindicação em iguais medidas. Qualquer um deles mantém a sua total pertinência artística e cívica, para lá de uma feroz independência. Trata-se da música provavelmente mais ouvida hoje em dia no nosso país, mesmo que quase não passe nas rádios, e mesmo que os seus discos não estejam sequer à venda nos sítios que ainda vendem discos físicos. Por definição, será a mais relevante representação da música da actual classe trabalhadora jovem portuguesa, por todo o país, bem como das mais estimadas e escutadas por adolescentes de norte a sul.

O texto está criado, grosso modo, para que fique o registo corrido do processo de entrevistas. Por esta técnica, desaparecem muitas conversas que desenharam as entrevistas, e ficam depoimentos editados (dactilografados), sobre os assuntos fundamentais que surgiram, à volta da matriz da música em si, e das zonas que a influenciaram.

A peça está segmentada pelos bairros onde cada artista cresceu ou, como no caso do Ghoya, pelo bairro de entre os vários bairros onde ele passou e passa tempo e que ele optou por escolheu para o efeito. O Né Jah, há anos emigrado em Paris, não estava em Portugal à época da realização das entrevistas, levando a que o Diogo Simões e eu estivéssemos à vontade para falar presencialmente com o seu irmão mais novo, Bebe, por sua indicação, na casa onde ambos, com outro irmão, cresceram. No caso do Primero G, a Arrentela é o seu segundo poiso de longa duração, depois de muita vida passada na desfeita Pedreira dos Húngaros. Dos quatro, no fundo, só a Mynda cresceu e permanece na Cova da Moura.

Escolhi desaparecer tanto quanto possível das entrevistas transcritas, só surgindo quando considerei ser necessário assegurar o ritmo e a fluidez de leitura da peça.

Encontrei extremas e antigas dificuldades em truncar o trabalho de entrevistas e de citação. É sufocante, escolhendo bem a palavra, deixar de lado uma data de raciocínios notáveis e de construção realista. Decidir entre estes pedaços iniciou e acabou por ser a arquitectura da peça. Concluo simplesmente que, para este oráculo de assuntos, não há páginas que cheguem.

Diogo Simões

COVA DA MOURA

LBC
Membro da direcção da Associação Moinho da Juventude e rapper

LBC Crioulo. Língua cabo-verdiana, não é? A propósito, a terminologia «crioulo» tem uma carga histórica muito negativa. Porque se for do ponto de vista linguístico, todas as línguas são crioulas. São classificações externas, que foram impostas sobre um conjunto de grupos. Imagina, por exemplo, a língua portuguesa. Quantas línguas influenciaram a contribuição da língua portuguesa? Se não estou em erro, [existem] cerca de quatro mil palavras do léxico português que advêm do árabe. Do ponto de vista da linguística, só há classificação de línguas crioulas por causa do que chamam de «contacto» entre as potências coloniais europeias e as partes dos países africanos, povos africanos. Se for do ponto de vista histórico, prático, todas as línguas tiveram a contribuição de várias línguas.

O crioulo é um eufemismo de luso-tropicalismo, da miscigenação, de uma desmaterialização das pessoas de origem africana, de tez negra. Basicamente, é uma construção histórica. Teve contribuição de duas partes, mesmo sabendo que a relação de poder era desigual.

Chamar a língua cabo-verdiana de crioulo é uma redução, é uma negação, é uma continuidade colonial. Os estudos sobre as línguas que apareceram durante o contexto da invasão colonial, em Cabo Verde, chamam língua cabo-verdiana. Que é uma definição do país. E, ao contrário do que se diz, a língua cabo-verdiana é uma língua oficial em Cabo Verde, de acordo com o nosso Artigo 9.º da Constituição da República de Cabo-Verde.

A língua cabo-verdiana é uma afirmação. […] Manter uma língua é uma questão importante, porque faz parte da cultura que não a fixa. Há sempre o movimento que a acompanha, o desenvolvimento da história. Então o facto de cantarem, numa sociedade em que quase há uma proibição — quase não, há uma proibição —, em que os miúdos não se podem exprimir às vezes, na sala de aula, entre eles ou entre elas (a nível da língua cabo-verdiana, dos seus pais, dos seus avós), quererem optar por cantar é uma afirmação de dizer: «Não. Nós cantamos como nós quisermos, na língua que nós quisermos. É o nosso direito, é a nossa verdade.» Isso é ser sujeito para si (se fosse hegeliano, mas não sou hegeliano).

Achas que dá menos trabalho fazer uma letra? Cansa. Há pesquisa, observação do dia-a-dia, há reflexão a nível da expressão, dicção, fonética e métrica. Há tudo. Há uma matemática. Há todo um cálculo, toda uma visão sociológica, uma questão psicológica de «o que é que eu sinto?». Há um pensamento da psicologia musical de como te vais projectar lá para fora. Aqui no bairro é simples: «Se eu disser essa palavra, será que a pessoa que está do outro lado vai perceber?» Isso é o diálogo.

Isso é importante, o porquê de cantar na língua cabo-verdiana, porque a língua é dinâmica. Aqui há várias palavras que são incorporadas que têm a ver com um processo. Acaba por ser uma ocidentalização. Recebe dinâmica da conjuntura social, política, económica, aqui em Portugal. E também há terminologias, mesmo quando há estrangeirismos… contexto de bairro para bairro… então não é a língua cabo-verdiana, como é lá em Cabo Verde. É, mas é algo que cresce, que se relaciona com o espaço social. E o facto de se cantar na língua cabo-verdiana aqui — e não é só filhos de cabo-verdianos que cantam na língua cabo-verdiana […] — é uma forma de resistência. Contra quê? Contra a desculturação num contexto mundial em que toda a gente tem uma espécie de filão, que é algo que não é inerente, é algo que é dado, que é produzido, derivado do contexto mundial. Rejeitar essa coisa que vem de cima é um acto de resistência.

Lusofonia é o quê? O que é lusofonia? É ressaca imperial, como dizia o Eduardo Lourenço. Nostalgia do império. Conservar as fronteiras simbólicas, que é um privilégio. Quem é que fala a língua portuguesa no dia-a-dia em Cabo Verde? Quem, na Guiné? Só se for a elite complexada, que tem vergonha daquilo. Só se for.

O olhar que existe, por exemplo, sobre o continente africano é de ir buscar o primitivo. É reducionismo, é «coisinha». Os outros são coisas, são curiosidades. Isso se chama racismo estilizado em forma de interesse cultural, de ingenuidade. «Olha a senhora, que ternura, olha como ela toca, não usa sapato, canta numa língua, num crioulo…» esse é um olhar que existe. É um olhar colonial. É uma autêntica vergonha. A Cesária passa a ser daquelas coisas de músicas do mundo. Música de destilar, clássica, e a nossa é dos restos. Músicas do mundo quer dizer os exóticos. É «exotização» para consumo, é exotismo. Vamos aí chamar pessoal que nós não entendemos muito bem a língua, que canta aquelas músicas; «vamos chamar os pretinhos». É, é, é isso mesmo.

dy

Dy

DY e LBC
Dy: rapper, membro da Associação Moinho da Juventude

D Bem, o meu nome é Heidir Correia. Nasci em Cabo Verde, vim para Portugal com um ano e pouco. Sou da Ilha de Santiago. Tenho trinta e sete anos, vivo na Cova da Moura há trinta e cinco. Estou na associação Moinho da Juventude há quinze anos, e trabalhei num projecto que era o projecto Sabura, que consiste em divulgar o lado positivo do bairro e quebrar o estigma negativo que há em volta da Cova da Moura. Este projecto tinha visitas guiadas por forma a dar às pessoas uma maneira de conhecer o bairro e ter uma opinião própria daquilo que é o bairro, e não daquilo que a comunicação social passa. Porque nós sabíamos o objectivo, principalmente de quem os mandava para cá. Havia uma grande especulação imobiliária em relação ao bairro. É um bairro que fica num alto, tens acesso a tudo, tens aqui estações de comboio, autocarros a passar à volta, tens aí a IC19, segunda Circular a passar à porta, uma vista fantástica. E daí haver muito interesse aqui no terreno do bairro, daí que quanto mais ou pior falavam, mais se calhar a câmara municipal da Amadora tinha argumentos para mandar isto abaixo.

Entrei na Associação há quinze anos. Aqui nós não idealizamos algo e convidamos as pessoas a participarem. Não. Nós vamos de encontro às necessidades. Houve uma pesquisa pelo bairro: «O que é que mais gostariam de fazer?», e muitos queriam ser cantores, DJs, produtores, trabalhar principalmente com a música. Nós chegámos à conclusão que nada melhor que um estúdio para abranger essas áreas todas. Foi daí também que nós criámos o projecto Kova M Estúdio. O primeiro produtor a trabalhar connosco foi o Chullage, depois veio o Machine, depois o Djoek, e o último foi o Katana Produções [actualmente está o Siças Produções]. Nós fizemos um som que foi o «Fronta», que em duas semanas já tinha um milhão de visualizações. Não foi o primeiro som, mas foi o primeiro videoclipe e foi logo um boom.

Nunca tivemos apoio para nada da nossa câmara. Não temos boa relação com a câmara da Amadora. Em termos do desenvolvimento do rap aqui no bairro acho que temos conseguido realizar várias coisas. Até os jovens que estiveram aqui nessa altura deram seguimento. Depois falta aquela parte em que tens de pagar o estúdio para gravares a tua música. Neste momento tens muitos jovens parados, e com gana, com vontade — de gravar, de produzir. E nós, como nunca fomos só um estúdio de gravação, também queremos dar formação, vamos ter uma pessoa que vai dar formação de produção. Para sermos independentes, completamente, e dar esse apoio aos jovens aqui do bairro.

[...]

Mynda

Mynda Guevara