Primeira Pessoa

W. J. T. Mitchell: «Somos bons a criar coisas que tornam as nossas vidas impossíveis.»

Afonso Dias Ramos

Uma das referências maiores no campo dos estudos visuais, o académico norte-americano W. J. T. Mitchell conversou com a Electra sobre os novos desafios colocados pelas máquinas digitais e a Inteligência Artificial, e sobre as dificuldades de entrever a própria sobrevivência da espécie humana no actual clima político.

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Michel Wolgemut, Moisés recebe os dez mandamentos, 1493 © Fotografia: Scala, Florença / Mary Evans

 

Um dos maiores especialistas mundiais em história e teoria dos media, em artes visuais e literatura desde o século XVIII até ao presente, W. J. T. Mitchell é professor de Inglês e História da Arte na Universidade de Chicago. Foi editor da Critical Inquiry (1978–2020), uma das principais revistas de teoria crítica nas artes e humanidades do último meio século, e escreveu alguns dos livros mais lidos e marcantes sobre o papel complexo e conturbado das imagens no mundo contemporâneo, como Iconology (1986), Picture Theory (1994), What do Pictures Want? (2005) ou Image Science (2015). Mais recentemente, publicou um comovente livro de memórias sobre a luta do seu filho contra uma doença psiquiátrica, Mental Traveller (2020), e aquele que vinha sendo um crescente interesse académico por ideias de loucura, insanidade, media e cultura visual acaba de culminar na nova monografia Seeing Through Madness (2025).

Acabado de chegar a Lucca, em Itália, para uma estada académica, após proferir uma série de palestras em Pequim, assistidas em directo por milhares de pessoas em todo o mundo, W. J. T. Mitchell conversa com a Electra sobre os desafios colocados pelas máquinas digitais e a Inteligência Artificial nos dias de hoje, bem como sobre o papel da cultura visual numa era politicamente explosiva, e porque deveríamos estar mais atentos à intersecção entre a loucura e a visão.

AFONSO DIAS RAMOS  Como é que a interacção entre palavra e imagem se tornou uma rampa de lançamento para o seu trabalho de investigação?

WJT MITCHELL  Fui educado na Igreja Católica Romana e cheguei a ser acólito. Quem cresceu assim sabe que as imagens são mágicas e especiais. Contudo, a Igreja ensinou-nos a não sermos idólatras: a não adorar as imagens, mas a venerá-las. Por isso, uma das primeiras coisas que aprendi a fazer foi essa distinção. A imagem é poderosa: pode ser perigosa, pode ser maravilhosa. Como se lida com isso? Dá para ver a influência desse fascínio pelas representações visuais à medida que fui escrevendo livros como Iconology, Image Science, Picture Theory ou What do Pictures Want?. Mas a imagem está sempre articulada com a linguagem. Há algo a dizer sobre ela. Mas ela também nos diz algo. E há ainda algo que não pode dizer. A relação entre palavras e imagens foi para mim uma preocupação constante até hoje, quando um dos principais criadores da IA nos diz que esta não é senão uma máquina de gerar palavras e imagens. Mal li essa frase, disse: «Ah! Agora vou ter de escrever sobre a IA porque aqui está, uma vez mais, outra vez, o mesmo problema familiar, misterioso e tão interessante.»

"Desde que começámos a criar imagens, queríamos que elas falassem connosco, ou tínhamos medo de que nos olhassem de volta, ou que tivessem vida própria."

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Henry Fuseli, The Nightmare [O pesadelo], 1790–91 © Fotografia: Goethe Museum, Frankfurt

 

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Robert Wise, The Day the Earth Stood Still [O Dia em que a Terra Parou], 1951 
Filme, 92 min. 
EUA

 

ADR  A sua dissertação sobre os poemas ilustrados de William Blake visava refutar o argumento de Suzanne Langer segundo o qual «não há casamentos felizes nas artes — apenas violações bem-sucedidas». A frase repete-se ao longo de toda a sua obra. Isso mudou com a IA?

WJTM  A minha dissertação sobre William Blake nos anos 60 tratava-se de um exercício puramente exploratório: a questão prática de confrontar um artista igualmente talentoso como pintor e poeta. É muito invulgar. Mesmo entre os artistas que conseguem fazê-lo, a maioria esconde um dos lados. Muito pouca gente sabia que Victor Hugo desenhava. Mas Blake uniu ambos em livros ilustrados, e todos pensavam que eram iluminuras medievais. A questão era: o que se passa entre as palavras e as imagens? Será que as imagens são meras ilustrações? E o que é uma ilustração? Às vezes refere uma figura e mostra uma imagem. Mas e se esta imagem não for um retrato, mas algo radicalmente diferente do texto? Um exemplo que surge sempre é o poema de Blake sobre o sublime, «O Tigre», sobre «a terrível simetria do tigre» que «brilha intensamente» na época da Revolução Francesa. Mas depois olha-se para a imagem e só lá está um pequenino gato malhado, pacífico. Qual era a ideia de Blake? Não se tratava simplesmente de uma ilustração, ele punha as imagens em relações dialógicas de intercâmbio, abrindo a palavra a algo inesperado. Tudo isto levou a uma reflexão mais profunda sobre a relação entre as palavras e as imagens enquanto problema teórico. Havia múltiplas teorias, é claro, e a mais antiga remontava provavelmente a Lessing, sendo posteriormente reforçada por Gombrich, baseada na distinção entre signo natural e signo convencional. Mas será a imagem um signo natural só porque a vemos automaticamente? Porque nos referimos à natureza, quando existem claramente diferentes tipos de artifício de ambos os lados? A partir daí fui dar a outros filósofos. Nelson Goodman explorou a distinção entre digital e analógico, definida não em termos computacionais, mas como sistemas de notação. O digital é um sistema de significação com um número finito de caracteres, enquanto o analógico tem um número infinito.
Foi precisamente essa diferença entre as palavras e as imagens o que me levou
a teorizar sobre tais categorias de significado.

ADR  Mais tarde, também diagnosticou a famosa «viragem icónica». O que acha ter motivado esse êxodo de académicos do campo da literatura para o dos estudos visuais?

WJTM  Cada um tem a sua história. Eu era professor de Inglês e escrevia sobre William Blake, por isso aprendi a olhar para as pinturas através da história da arte, mas sem me deixar totalmente dominar por ela. O ponto de partida foi duplo. Primeiro, o grande livro do filósofo Richard Rorty, The Linguistic Turn. Rorty afirmou que começámos por pensar em objectos e depois virámo-nos para os conceitos. A filosofia principiou pelas coisas materiais e depois voltou-se para as ideias. Mas no século passado, como disse, virámo-nos para a linguagem. Todos os nossos problemas rodavam à sua volta. Mas então e as imagens, que são pelo menos metade daquilo que é a representação e a significação? O outro ponto de partida foi a viragem na filosofia francesa, com Jean Baudrillard e Guy Debord, e o advento do «simulacro» e do «espectáculo» como grandes questões, ambos maus e perigosos. Tratava-se de um novo tipo de imagem surgido depois do cinema, já então canonizado, e depois da televisão maligna, a «caixa idiota», que afirmavam estar a treinar uma geração inteira a viver como sonâmbula. Tudo isto soava a uma «viragem icónica» bastante ameaçadora. Até que, finalmente, cheguei ao filósofo certo, ao meu guia, Charles Sanders Peirce, que defendia que toda a significação se reduz a três funções: símbolo, ícone e índice. Isto basicamente equivale à linguagem, à imagem semelhante e ao índice que liga ambos. Esta simples tríade da representação foi como uma revelação. Falei sempre de palavras e de imagens, sem nunca me ocorrer que também estava a falar do índice, o tecido conjuntivo. Era o signo existencial, no qual o significado advém totalmente do contexto, de onde surge, quando e porquê. Tudo se funde. Os filósofos franceses disseram-nos que estava a ocorrer uma viragem icónica e que isso era mau, aterrador. Então, quis contar uma história que não era nem má nem boa, mas que estava a acontecer para o bem e para o mal. É algo semelhante à minha actual abordagem à IA, onde percorro uma corda bamba entre a utopia e a distopia para perceber as possibilidades de um novo medium. Na altura, pensei: «Não será tempo de actualizar Rorty?» Tivemos uma viragem linguística, e a filosofia seguiu esse caminho. Mas o grande Gilles Deleuze também afirmou que a filosofia tem procurado escapar à imagem através de abstracções, tentando voltar a ideias sem corpo. Mas falha. A filosofia acaba sempre por regressar à iconologia. É aí onde estou.

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