Figura

Thomas Mann: o homem que não podia amar

Tilmann Lahme

Tilmann Lahme é um reconhecido especialista da família Mann e dos seus notáveis membros. Autor de vários livros sobre eles, publicou recentemente uma biografia de Thomas Mann, recebida como uma obra capital para o conhecimento do grande escritor alemão, de que agora se comemoram os 150 anos do nascimento e os 70 da morte. Neste ensaio interpretativo, Lahme usa e condensa os seus vastos e profundos conhecimentos para nos revelar uma figura que se tornou símbolo de um tempo e de um mundo, dos seus conflitos e tragédias. Esta bela e melancólica narrativa, escrita para a Electra, tem como fio condutor um segredo, ao mesmo tempo ocultado e mostrado por Mann, que está na «base do “brilho e tormento” da sua grande literatura e da sua vida de conflito interior e tristeza».

Thomas Mann

Edward Steichen, Thomas Mann, Nova Iorque, 1934 © Fotografia: Scala, Florença / Whitney Museum of American Art, Nova Iorque

 

Por volta do ano de 1890, o jovem Thomas Mann, nessa altura aluno do Liceu de Lübeck, apaixona-se pelo colega Armin Martens — que, ao receber um poema e uma confissão de amor, se ri dele. Martens mostra a Thomas Mann não apenas que os seus sentimentos não são recíprocos, mas que considera esse amor errado e perverso. Thomas Mann carregará essa rejeição a vida inteira. Uma e outra vez transformará os perigos do amor em literatura.

A primeira grande ofensa será para Thomas Mann uma experiência iniciática, com a seguinte lição: o amor tem de permanecer secreto. Quando, tempos mais tarde, se apaixona pelo colega Williram Timpe, as coisas passam-se de outra maneira. O contacto consiste apenas no empréstimo cortês de um lápis para a aula de desenho — mas Thomas Mann guarda por longo tempo as aparas do lápis afiado como recordação do seu amor por Willri. A segunda lição é a seguinte: o amor à distância é mais seguro. Anos depois, Thomas Mann retomará a história do lápis e do amor secreto no seu romance A Montanha Mágica, no qual a atribui ao protagonista Hans Castorp. Ao longo do livro, um lápis tornar- -se-á o objecto simbólico central do romance. O pedido de um lápis conduz à primeira aproximação pessoal entre Castorp e a mulher por quem se apaixonou, a russa Clawdia Chauchat, que lhe recorda os colegas que amou antes; este lápis, além do mais, sugere aos leitores do romance que Hans e Clawdia passarão a noite juntos na cama. A discreta aventura em torno de um lápis, quando Thomas Mann era aluno de liceu, tornar-se-á literatura mundial.

"A primeira grande ofensa será para Thomas Mann uma experiência iniciática, com a seguinte lição: o amor tem de permanecer secreto. […] A segunda lição é a seguinte: o amor à distância é mais seguro."

Otto Grautoff, o seu amigo mais próximo nos anos de juventude, e Thomas Mann não falam dos seus sentimentos mútuos, mas da consciência de serem ambos diferentes. São os dois maus alunos e mantêm-se à parte, interessam-se por literatura, escrevem dramas, poemas e tentativas de prosa e discutem-nos; e são ambos homossexuais. Lêem a Psychopathia sexualis de Richard von Krafft-Ebing, a obra científica de referência à época sobre a sexualidade e as suas «formas patológicas», como então se chamavam. Estudam também Die konträre Sexualempfindung [A sensibilidade sexual invertida] de Albert Moll, mais um livro dedicado ao tema da homossexualidade. Procuram avidamente respostas à seguinte pergunta: o que poderão significar os seus sentimentos por pessoas do mesmo sexo? As leituras de ambos os livros constituem um abalo grande e duradouro para os dois rapazes.

Ficam a saber o que pensa a ciência do seu tempo, da viragem do século XIX para o século XX, sobre a homossexualidade masculina: uma doença do cérebro, degenerativa e hereditária, agravada pela masturbação precoce e intensiva, bem como pelo contacto próximo e por fantasias com homens — além disso, dificilmente curável. Segundo Krafft-Ebing e Moll, a homossexualidade pode ser curada no caso de homens que têm ainda uma «inclinação residual» pelas mulheres, consistindo a cura em promover essa inclinação e em fazer terapia até que o amor proibido se perca. Trata-se de uma terapia de conversão com recurso à hipnose, a uma renúncia estrita ao amor homossexual e a um caminho sexual que conduza ao outro sexo: a prática regular de sexo com mulheres deverá ajudar à «cura». Em inúmeros estudos de casos, Krafft-Ebing e Moll descrevem os destinos de homens homossexuais que sofrem por amarem outros homens, um amor que conseguem superar graças à terapia de conversão até se considerar que estão «curados».

Mais tarde, quando se afastam, terminado o liceu, o futuro escritor Thomas Mann e Otto Grautoff, que também quer ser escritor, trocam cartas. Escrevem sobre as suas vidas, a sua literatura e, embora cautelosamente, sobre o seu desejo homossexual e a luta para o suprimir. Thomas Mann insta o amigo a destruir sempre todas as cartas. Ele próprio queima todos os seus diários desses anos, todos os textos literários que não foram publicados e todas as cartas do seu amigo de juventude dessa época. Mas Otto Grautoff não cumpre os desejos do amigo. Censura as cartas que recebe, corta partes e deita fora algumas. Mas conserva várias. Nelas Thomas Mann acompanha, entre outras coisas, a terapia de conversão a que o amigo se submete em Berlim — no consultório de Albert Moll, cujo livro haviam lido juntos.

"É precisamente aqui que reside a mestria de Mann: mostra sem admitir, descreve sem se expor. Em Tonio Kröger, Thomas Mann fala abertamente, o que é raro, sobre a origem do seu impulso literário: uma sensação de alienação que é a um tempo fonte de dor e de criatividade."

death in venice

Luchino Visconti, Morte a Venezia [Morte em Veneza], 1971 
Filme, 129 min. 
Itália

 

Estas cartas dão conta da tentativa complexa de Thomas Mann de refrear o seu amor e o seu desejo, de manter presos a uma corrente os «cães que vivem na cave», como lhes chama, aludindo a Nietzsche. Acredita, ao contrário do amigo, ser capaz de manter controlada a sua «anomalia» recorrendo a meios literários. Percorre o complicado caminho de viver e defender a sua homossexualidade como sendo especial, de a viver como sentimento e de lhe dar forma literária, mas de recusar todos os actos sexuais. O seu mote é: «Separemos o baixo-ventre do amor.» Esta atitude causará crises e conflitos toda a sua vida. Mas é também a base da sua criação literária. No que respeita às suas vidas e amores, os dois amigos aceitam, no fundo, o que a medicina da época lhes prescreve: uma vida de negação de si mesmos, de disciplina e de casamento heterossexual. As primeiras tentativas literárias de Thomas Mann oscilam entre o convencional e o esforço tacteante de apreender o que é propriamente seu. O primeiro conto que publica, «Gefallen» [Caídos] (1894), versa um amor heterossexual, mas a protagonista feminina é palidamente retratada e a acção, convencional. Para Thomas Mann trata-se de um teste levado a cabo nos seus primeiros tempos de escritor. Depressa se apercebe de que as palmadinhas nas costas e os elogios à maturidade literária do rapaz de dezanove anos não iludem o facto de não ter ainda encontrado a sua voz. O caso muda de figura com «Der kleine Herr Friedemann» [O pequeno Herr Friedemann] (1897): com este conto, Mann encontra uma forma literária que lhe permite expressar a sua diferença. O protagonista, um homem fisicamente deformado e posto à margem, vive afastado do amor e, assim, das desilusões. Não obstante, quando o amor o captura, arrasta-o para o abismo de uma grande humilhação, da rejeição e do suicídio. Thomas Mann encontrara, nas suas próprias palavras, «as formas e as máscaras discretas» que lhe permitiam expressar-se literariamente.

O romance Os Buddenbrook, de 1901, assinala o momento de viragem literária: um romance de sociedade que se baseia na sua própria família e que relata o declínio de uma família de comerciantes. Salta à vista sobretudo a figura de Hanno Buddenbrook, o último herdeiro masculino, com o seu entusiasmo pela música, a sua fraqueza, recusa e morte. Hanno é um alter ego que não pode singrar porque recusa a submissão à norma social. É nesta figura que, pela primeira vez, se revela claramente um princípio estético: o rapaz sensível e artístico que sofre por causa daquela norma. Cerca de 1900, ou seja, pouco antes de concluir Os Buddenbrook, Paul Ehrenberg entra na vida de Thomas Mann — e muda-a profundamente. Ehrenberg não é apenas um artista carismático, é também uma figura de projecção dos sentimentos recalcados de Mann. Em inúmeras entradas nos seus cadernos, torna-se claro o fascínio que Thomas Mann sente por ele. O amor por Ehrenberg condu-lo a uma crise: aquilo que até então vira como um sentimento controlável ameaça dominá-lo. É-lhe difícil captar Paul Ehrenberg, até literariamente. Os planos literários nos quais o amigo amado desempenha um papel enquanto modelo não passam de fragmentos ou são literariamente pouco convincentes. 

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