Estas cartas dão conta da tentativa complexa de Thomas Mann de refrear o seu amor e o seu desejo, de manter presos a uma corrente os «cães que vivem na cave», como lhes chama, aludindo a Nietzsche. Acredita, ao contrário do amigo, ser capaz de manter controlada a sua «anomalia» recorrendo a meios literários. Percorre o complicado caminho de viver e defender a sua homossexualidade como sendo especial, de a viver como sentimento e de lhe dar forma literária, mas de recusar todos os actos sexuais. O seu mote é: «Separemos o baixo-ventre do amor.» Esta atitude causará crises e conflitos toda a sua vida. Mas é também a base da sua criação literária. No que respeita às suas vidas e amores, os dois amigos aceitam, no fundo, o que a medicina da época lhes prescreve: uma vida de negação de si mesmos, de disciplina e de casamento heterossexual. As primeiras tentativas literárias de Thomas Mann oscilam entre o convencional e o esforço tacteante de apreender o que é propriamente seu. O primeiro conto que publica, «Gefallen» [Caídos] (1894), versa um amor heterossexual, mas a protagonista feminina é palidamente retratada e a acção, convencional. Para Thomas Mann trata-se de um teste levado a cabo nos seus primeiros tempos de escritor. Depressa se apercebe de que as palmadinhas nas costas e os elogios à maturidade literária do rapaz de dezanove anos não iludem o facto de não ter ainda encontrado a sua voz. O caso muda de figura com «Der kleine Herr Friedemann» [O pequeno Herr Friedemann] (1897): com este conto, Mann encontra uma forma literária que lhe permite expressar a sua diferença. O protagonista, um homem fisicamente deformado e posto à margem, vive afastado do amor e, assim, das desilusões. Não obstante, quando o amor o captura, arrasta-o para o abismo de uma grande humilhação, da rejeição e do suicídio. Thomas Mann encontrara, nas suas próprias palavras, «as formas e as máscaras discretas» que lhe permitiam expressar-se literariamente.
O romance Os Buddenbrook, de 1901, assinala o momento de viragem literária: um romance de sociedade que se baseia na sua própria família e que relata o declínio de uma família de comerciantes. Salta à vista sobretudo a figura de Hanno Buddenbrook, o último herdeiro masculino, com o seu entusiasmo pela música, a sua fraqueza, recusa e morte. Hanno é um alter ego que não pode singrar porque recusa a submissão à norma social. É nesta figura que, pela primeira vez, se revela claramente um princípio estético: o rapaz sensível e artístico que sofre por causa daquela norma. Cerca de 1900, ou seja, pouco antes de concluir Os Buddenbrook, Paul Ehrenberg entra na vida de Thomas Mann — e muda-a profundamente. Ehrenberg não é apenas um artista carismático, é também uma figura de projecção dos sentimentos recalcados de Mann. Em inúmeras entradas nos seus cadernos, torna-se claro o fascínio que Thomas Mann sente por ele. O amor por Ehrenberg condu-lo a uma crise: aquilo que até então vira como um sentimento controlável ameaça dominá-lo. É-lhe difícil captar Paul Ehrenberg, até literariamente. Os planos literários nos quais o amigo amado desempenha um papel enquanto modelo não passam de fragmentos ou são literariamente pouco convincentes.
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