Primeira Pessoa

Pascal Quignard: «Sou um escritor das ruínas.»

António Guerreiro

Esta entrevista a Pascal Quignard mostra bem que este escritor, que se considera um «tradutor» — classificação que abrange uma outra e eminente condição, a de leitor —, pertence a vários tempos e habita em diferentes mundos: o mundo da organização clássica e o mundo da desordem e da exuberância barrocas; o mundo da sombra e embriaguez dionisíaca e o mundo da harmonia e da claridade apolíneas.

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© DESPATIN & GOBELI / opale. photo, Paris

 

Do escritor francês Pascal Quignard pode dizer-se que vale por uma literatura inteira. Não só porque a sua vastíssima obra, habitada por vários saberes e disciplinas, atravessa toda a história da literatura até à Antiguidade clássica, com a qual mantém uma relação de grande proximidade, mas também porque sempre se deslocou entre muitos géneros e formas literárias, satisfazendo assim as suas necessidades de «escritor omnívoro», tal como se define no final desta entrevista, feita na sua casa de Paris. Mas o seu universo não é apenas o da literatura. O diálogo com as outras artes, muito especialmente com a música, abre a sua obra a vastos horizontes. Também violoncelista e organista, Quignard habita os territórios da literatura com uma enorme aptidão para atravessar fronteiras e ampliar em muitas direcções a palavra literária. É moderno, mas também clássico. Com muita pertinência, já foi classificado como um «humanista da modernidade».

ANTÓNIO GUERREIRO  Para a realização desta entrevista, sugeriu que falássemos de uma «pintura que o apaixona, o subjuga», um fresco que se encontra na Biblioteca Apostólica do Vaticano, representando um episódio da Odisseia no qual Ulisses é recebido no inferno por Tirésias. Porque se sente tão atraído, subjugado, por este fresco?

PASCAL QUIGNARD  Fiquei imerso nele para escrever o meu próximo livro, que é sobre a morte, sobre esta questão simples: porque é que se ornamentou a morte como uma estadia, uma passagem para outra vida? Para cada livro preciso de uma música. Para este, fui buscá-la a um compositor alemão da época barroca de que gosto muito, Johann Jakob Froberger, que compôs uma belíssima peça para cravo a que deu o título «Meditação sobre a minha morte futura». Desde que comecei a escrever, com os meus dezoito anos, tenho vindo a procurar obras pouco conhecidas ou até completamente desconhecidas como fundo para o que escrevo. A minha primeira incursão foi um ensaio sobre Délie, de Maurice Scève. Depois Paul Celan pediu-me para traduzir Alexandra, do poeta grego Licofron. E recentemente escrevi um ensaio, «Traité sur Esprit», para integrar uma reedição de La fausseté des vertus humaines, do grande moralista Jacques Esprit, do século xvii, que foi amigo de La Rochefoucauld. Ambos, em conjunto, quiseram destruir todos os valores positivos do cristianismo. Jacques Esprit, que escreveu um livro enorme, é muito menos conhecido do que La Rochefoucauld, que escreveu um pequeno livro. Sempre gostei de destacar figuras um pouco esquecidas. Froberger percorreu uma Europa a ferro e fogo, na altura da Fronda, das guerras civis em França, no século XVII. Encontramos nele outras coisas muito curiosas: pretendeu escrever um diário íntimo, o que é hoje muito frequente, mas na sua época era raro, e nunca quis ser publicado, fez tudo para impedir qualquer notoriedade. O facto de não ter público era muito importante para ele. Toco a «Meditação sobre a minha morte futura» com frequência. Já faz parte da minha vida também porque tenho setenta e sete anos, já não tenho muito tempo para viver. É um bom tema. E o facto de poder detestar a morte mais do que amá-la interessa-me também, tanto quanto esse fresco do Vaticano, muito pouco conhecido.

"Vivo no nosso tempo, penso que jamais tive a nostalgia de um outro, mas não vivo o tempo da mesma maneira que toda a gente. Vivi no nosso tempo, na medida em que toda a minha infância foi passada no porto do Havre, em ruínas."

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Paisagem da Odisseia, 40–30 a.C. © Fotografia: Scala, Florença / Bibliotheca Apostolica Vaticana, Vaticano

 

AG  Como é que o descobriu?

PQ  Através de livros eruditos sobre Tirésias. Conheço todas as personagens representadas no fresco. Vê-se ao longe a nau no mar das sereias a chegar. Curiosamente, não se vê a Sibila. É uma cena maravilhosa, uma representação do inferno romano, com a deusa do submundo, dos infernos, Perséfone, a mergulhar os pés na água. É muito diferente do Inferno dos cristãos, e faz-me meditar. E o meu interesse está também ligado a uma certa circunstância pessoal, vou todos os Verões para as ilhas vulcânicas da baía de Nápoles, Ísquia e Prócida. Gosto dos vulcões, gosto desse sentimento que advém de uma relação com a vida da Terra. Porque é que os romanos quiseram que o lugar do seu paraíso fosse o lugar do seu inferno? Isso não é de modo algum o que o cristianismo nos ensinou.

AG  Quer dizer que para os romanos há uma coincidência entre o inferno e o paraíso?

PQ  Em Nápoles, os romanos tinham as suas casas, as suas villas. Augusto comprou Ísquia e depois vendeu-a para comprar Capri. Aquilo era o paraíso. Mas ao mesmo tempo era também o lugar onde a Sibila recebeu Eneias e o fez descer aos infernos com cheiro a enxofre. Enquanto escrevo, tenho sempre à minha frente uma fotografia deste fresco fabuloso. Uma fotografia que um psicanalista tirou para mim.

AG  Parece um quadro moderno…

PQ  Também acho. Veja como encontrei uma imagem muito pouco conhecida, mas muito bela. Na revista, a ilustrar a entrevista, vai ficar magnífica. Não tenham medo de saturar as cores, de fazer batota. Peço que utilizem esta imagem de maneira abusiva, para que ela seja sumptuosa. Gosto muito dela. Como não é conhecida, mais vale dar a conhecê-la. E acho que respondi à sua pergunta, referindo estas duas coisas de que precisei. São duas pequenas condições para meditar sobre a minha morte futura.

AG  Mas a morte esteve sempre no horizonte ou mesmo de maneira explícita naquilo que escreveu…

PQ  Sim, é verdade, mas ligada a uma concepção, a uma tradição cristã da morte, que todos temos. Quero reflectir sobre isso. Fui um menino do coro, muito cristão. E venho de uma família de organistas. É uma tradição da Igreja: não se é padre, então é-se organista. Os organistas conhecem tão bem as sacristias como os padres. Mas não as usam da mesma maneira. Há uma bela tradição filosófica que nega a morte, que diz que é uma experiência da qual não se pode ter a experiência e, portanto, dela nada se pode dizer. De Epicuro e os estóicos até Bergson e Blanchot. E depois há uma tradição nova, a da psicanálise, que me salvou. Tive muitas depressões e dificuldades. Afirmo com empenho que fui salvo pela psicanálise, e faço-o para a defender, numa altura em que é atacada e desvalorizada. Os psiquiatras e os medicamentos são preferidos em detrimento dos psicanalistas e da reflexão. Para a psicanálise, vivemos no oceano das nossas mães, e o nascimento, a cena natal, é um sofrimento indizível, uma mudança de regime, uma revolução, aquilo a que Freud chama «perda originária», que corresponde a uma espécie de morte, de sufoco, ao dar-se a passagem de um mundo para outro. Neste caso, teríamos a experiência da morte no nascimento. E o psicanalista inglês Winnicott entendia que na depressão nervosa esquecemos algo que já experimentámos ao nascer. Em suma, os filósofos dizem que não temos experiência da morte e os psicanalistas dizem que temos. Portanto, ainda que Froberger diga que a sua peça musical é sobre a sua morte futura, talvez ela seja sobre a sua morte antiga e se trate de um grande lamento.

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