Na sua novela O Medo, Stefan Zweig entrega-lhe este corpo:
Os desastres do medo
Desde o antes que anunciou o depois, os sons e as imagens não param de falar do medo — para o mostrar, expressar, testemunhar, exibir, denunciar, depreciar, acusar, enaltecer, louvar, utilizar, sublimar, encobrir. Muitas vezes, as palavras, os gritos, os murmúrios, os gestos, os tiques, os esgares, os olhares, as contracções, as feições falam do medo, daquilo que o causa e daquilo que ele causa. Outras vezes, falam do medo, falando de outras coisas, pois do medo o disfarce, a dissimulação ou o recalcamento costumam ser aliados, cúmplices ou servidores.
Quando Irene descia as escadas do apartamento do amante, aquele medo súbito e irracional voltou a tomar conta dela. Um pião negro pôs‑se a zunir de repente diante dos seus olhos, os joelhos imobilizaram-se numa terrível rigidez e foi obrigada a agarrar‑se ao corrimão para não cair bruscamente para a frente.
No fado que tem o título «Medo», a grande cantora Amália Rodrigues dá a sua voz trágica à pergunta que muitos intimamente fazem:
Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo
Mas se insistirem, lhes digo
O medo mora comigo
Mas só o medo, mas só o medo
No soneto «Que poderei do mundo já querer», Luís de Camões canta o seu lamento:
A morte, a meu pesar, me assegurou
De quanto mal me vinha; já perdi
O que a perder o medo me ensinou
Francisco de Goya, Saturno devorando um filho, 1821–23 © Fotografia: Scala, Florença / Museo Nacional del Prado, Madrid
Do filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, o medo é o melhor cartaz e o melhor arrepio. O audacioso mestre do suspense fez sempre da obsessão do medo o motivo mais constante e mais activo da sua inspiração e da sua criação, do seu trabalho e do seu triunfo. E fez também das suas muitas inseguranças e fobias (acrofobia, claustrofobia, agorafobia, atiquifobia, amaxofobia, etc.) a experiência transcrita, transmutada e transfigurada, nas suas histórias aterradoras.
Francisco de Goya, no Disparate do medo, Gustave Courbet, em O desesperado ou O homem enlouquecido pelo medo, e Asger Jorn, em O medo, representam várias aparências dessa emoção natural, tida no entanto como pouco heróica, feita da consciência do perigo ou da irracionalidade que o cria. Asger Jorn foi um dos principais fundadores da Internacional Situacionista e do movimento CoBrA, o qual declarou: «Um quadro não é uma construção de cores e de linhas, mas um animal, uma noite, um grito, um ser humano, ou tudo isso ao mesmo tempo.» Antes, Edvard Munch já tinha dito o mesmo, pintando.
Na história do pensamento ocidental, o medo é um dado fundamental para a construção de diversas e sucessivas antropologias filosóficas. Dos estóicos, epicuristas, cínicos, de Platão e Aristóteles (muito a propósito da tragédia grega) a Freud, Jung, Husserl, Heidegger, Sartre, Camus, Arendt, Cioran e Hans Jonas, passando por Hobbes, Pascal, Espinosa, Locke, Rousseau, Nietzsche, Hegel, Marx, o medo, olhado como uma emoção ou uma paixão — positiva ou negativa, natural ou artificial, útil ou perigosa, necessária ou contingente —, está no centro da meditação sobre a condição humana, a liberdade e o destino, o ser e o tempo, a vida e a morte, a consciência e o mundo, a natureza e a cultura.
O medo é uma das matérias-primas e das energias da História. Ao longo dos séculos, o medo caracteriza e dá nome a épocas, períodos, regimes. Do Medo do Fim do Mundo, no Ano Mil, ao Grande Medo de 1789 e ao Terror de 1793–94, passando por pandemias, epidemias, fomes, guerras, tiranias, cismas, heresias, massacres, perseguições, limpezas étnicas, purgas religiosas, desastres naturais, os passos dos homens e das mulheres sobre a Terra percorreram muitas vezes os aterradores caminhos do medo.
O Grande Terramoto de Lisboa, em 1755, gerou uma onda universal de medo e dela há múltiplos testemunhos literários, filosóficos, científicos e religiosos. Entre eles, ganharam grande relevo o poema de Voltaire e o relato que faz no Cândido ou o Optimismo, e os três ensaios de Kant.
A história da Rússia, por exemplo, está trespassada pelo medo (causar o medo e padecer do medo) e dele dão múltiplas notícias a política, as artes visuais, a música, o cinema, a literatura: Dostoiévski, Tolstói, Gógol ou Turguéniev. (Guy de Maupassant escreveu duas novelas, em 1882 e 1884, com o título «O medo». Na última, o narrador relata uma história assombrosa e assombrada contada por Ivan Turguéniev, num domingo, em casa de Flaubert).
No Japão, o medo é aquilo que se quer olhar de frente. O Verão é a estação do medo e essa é uma boa altura para contar histórias negras e ver filmes de terror. O requintado prazer de ter medo e de provocar medo é, afinal, uma volúpia universal (a noite do Halloween prova-o). O Drácula de Bram Stoker e o Frankenstein de Mary Shelley têm uma feroz concorrência no Oriente.
O século XX foi um século do medo. Os acontecimentos que fizeram do horror e do terror as suas infames marcas multiplicaram-se. As duas guerras mundiais foram fábricas de medo, de morte e de ignomínia. Na segunda, os campos de extermínio mudaram o estatuto ontológico do crime. Mais do que em qualquer tempo passado, o mal e o medo coincidiram, nesse tempo dos extremos, numa acumulação de palavras começadas por B: barbárie, brutalidade, boçalidade, bestialidade.
O historiador Jean Delumeau, no livro O Medo no Ocidente, mostra que os indivíduos, as comunidades e as civilizações mantêm uma conversa permanente, latente ou manifesta, com os medos e com o medo, quer ele se apresente com a face dos terrores medievais, quer com a obsessão contemporânea pela segurança. Na história do medo, estão presentes alucinações colectivas e compulsões desvairadas, intimidações delirantes e superstições inconcebíveis, conspirações tenebrosas e mistificações escandalosas, intimidades inconfessáveis e pesadelos indecifráveis, inquietações secretas e sobressaltos visíveis.
A obra de Delumeau revela as continuidades e as rupturas presentes nas variadas formas com que o medo se impôs ao longo da História: dos medos massificados causados pela peste ou pela escassez aos tremores provocados pelas sedições populares e pelas desordens políticas, jurídicas, morais e religiosas, dos terrores gerados pelas acções e obras atribuídas ao Diabo e seus seguidores aos pânicos e pavores descritos nos processos de feitiçaria e de outras heresias, do temor da morte e dos mortos ao terror produzido pelas profecias apocalípticas que ameaçam o fim do mundo.
No livro Conjurer la peur: Essai sur la force politique des images [O medo: ensaio sobre a força política das imagens], Patrick Boucheron olha com agilidade e percuciência a obra conhecida como A alegoria do bom e do mau governo, pintada por Ambrogio Lorenzetti, em 1338, na Sala dos Nove (ou Sala da Paz) do Palácio Público da República de Siena. O pintor viria a morrer uma década depois, vitimado, tal como o seu irmão Pietro, também pintor, pela peste negra, essa maré mortífera geradora dos medos mais incansáveis e mais indefesos.
Esta portentosa alegoria, que mantém intactos o carisma incandescente e a energia simbólica, foi pintada numa situação de emergência da cidade, quando os princípios republicanos estavam em risco de ser subvertidos pela cominação de uma tirania firmada no poder pessoal e no arbítrio; pela cizânia causada pelo ódio social; e pela catástrofe avassaladora da guerra (há no mural uma Guernica sienense a denunciar o que se passava naquele tempo). No entanto, o maior e mais perigoso medo não se considerava ser o da tirania — era o da aceitação, da justificação e mesmo da sedução que os seus artífices conseguiam obter do povo.
As imagens de Ambrogio eram uma poderosa arma de combate político para tentar esconjurar o medo originado pelos perigos do mau governo. Essas figuras e formas ali representadas, na sua tese e na sua antítese, opunham-se à negatividade, denunciando-a, e propunham uma positividade, defendendo uma política assente na integridade e na legitimidade, que propiciasse uma maneira justa e pacífica de se viver em comum. Se fundado na sabedoria e na virtude, o bom governo, para ser digno do nome por que o reconheciam, haveria sobretudo de produzir efeitos benéficos e resultados concretos e duradouros na vida de cada cidadão.
Como nos mostra a hermenêutica desta obra, o medo é uma terrível tirania, que pode exercer uma perversa e demoníaca sedução. Conduz quem o sofre a aceitar a tirania, mas dá-lhe frequentemente a vontade vingativa de ser também tirano. Um povo com medo é um povo submetido! Mas, não raro, torna-se também um povo com vontade de submeter e tiranizar outros povos.
Ao considerarmos o que em tudo isto há de exemplo e ensinamento, uma pergunta surge, interpelando-nos com clareza: falando dessa magistral pintura e dessa monumental cidade toscana do século XIV, que, mesmo sem o saber nitidamente, já então iniciara o voo rasante da sua irreversível decadência, não é, afinal, de nós, da nossa civilização e da nossa cultura, do nosso tempo e das nossas cidades, das nossas ameaças e das nossas tragédias, dos nossos perigos e dos nossos medos, que estamos a falar?
Esconjurar, exorcizar, conter, domesticar, disciplinar, minimizar, sublimar, ultrapassar, mas também, em sinistra simetria, incutir, manipular, explorar, explodir, comunicar, contagiar, falsear, manobrar o medo! Para que serve o medo? Como é ter medo? O que é ter medo?
Ter medo é não pensar em mais nada sem pensar também no medo. Sentir medo é sentir uma mão a agarrar-nos, sem sabermos se ela nos puxa ou nos empurra para o perigo — e é experimentar sobre o agudo arrepio do nosso corpo e da nossa mente um hálito ácido que sopra no sentido contrário ao da nossa respiração. Ter medo é sonhar que uma raposa entra no galinheiro, e não há canto que se oiça ao amanhecer. Ter medo é saber que o navio parte para o alto-mar e a tempestade não o deixará avançar senão para o fundo. Ter medo é cavar no interior um buraco negro para onde tudo se dirige e de onde nada sai limpo.
Ter medo é dizer aos outros para terem medo connosco e fazer do medo dos outros uma companhia, um apoio, uma desculpa, um álibi ou uma justificação para o nosso próprio medo. Há pessoas com medo porque geraram em si o medo e há pessoas com medo porque sofrem o medo que os outros geraram neles. Há pessoas que importam o medo e outras que o exportam.
Ter medo é ficar passivo, perdido, possuído, perseguido, perturbado, possesso, paralisado, prisioneiro. Mas também pode ser tornar-se insensato, enlouquecido, irreflectido, irresponsável, inconsequente, incauto, precipitado, apressado.
Ter medo é estar bloqueado, submetido, abismado, subjugado, hipotecado, submerso, resignado, silenciado. Mas também pode ser, se for necessário, útil ou conveniente, trair, negar (o medo de Pedro que nega Jesus preso e condenado a morrer crucificado), denunciar, caluniar, repudiar, entregar, mentir, desistir.
O medo controla, constrange, oprime, exclui, expulsa, censura, atormenta, vexa, escraviza, destrói. Mas poderá também libertar, soltar, subverter, acicatar, aproximar, encorajar, dignificar? Poderá o poder negativo do medo, por uma estranha e irónica deslocação, transformar-se num poder positivo de reacção, protesto e acção? Poderão o Direito e o poder que em seu nome se exerce criar medos, mas também ser protectores e antídotos contra eles?
O filósofo italiano Giorgio Agamben, que muito tem escrito, com radical imputação, sobre o medo, os seus danos e os seus desastres, previne assim: «O medo prepara-nos para aceitar tudo.» E poderia porventura acrescentar que também nos prepara para sermos capazes de tudo. É que o medo torna-nos corajosos ou torna-nos cobardes.
No seu poema «O Medo», Carlos Drummond de Andrade diz:
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo
Vestimos panos de medo
De medo, vermelho nos vadeamos
[…]
O medo, com sua física, tanto produz: carcereiros, edifícios, escritores, este poema; outras vidas
Tinha medo do que gostava e gostava do que lhe fazia medo. Tinha medo de escrever e tinha medo de não escrever. Um dia, ela disse: «Depois do medo, vem o mundo.» Clarice Lispector fez do medo uma palavra que não se libertava dos seus lábios lentos:
O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado.
Luiza Neto Jorge diz no poema «Do Medo I»:
É de ti que eu sou irmã
por ti fui trocada em criança
quando as estrelas semearam a noite
(Ficávamos chorando de medo
Se o laço branco da trança não desse
Para a escuridão toda do quarto)
Tenho os silêncios que me emprestaste
O poeta português Al Berto deu ao livro em que reuniu toda a sua poesia o título O Medo, e o filósofo José Gil, no seu ensaio sobre a actualidade da questão nacional, chamou-lhe Portugal, Hoje: O Medo de Existir.
Na literatura portuguesa de viagens, aventuras, naufrágios e descobrimentos, o mar, o medo e a morte desenham o mapa de navegação. Na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou na História Trágico-Marítima, lemos o medo como se fosse nosso…
Existem muitos medos: o medo individual e o medo colectivo, o medo físico e o medo psicológico, o medo consciente e o medo inconsciente, o medo interior e o medo exterior, o medo superficial e o medo profundo, o medo vígil e o medo onírico, o medo prévio e o medo póstero (ou póstumo), o medo teórico e o medo prático, o medo antigo e o medo novo, o medo infantil e o medo adulto. Existem o medo passageiro e o medo duradouro, o medo de si e o medo dos outros, o medo religioso e o medo político, o medo policial e o medo mediático, o medo sanitário e o medo criminal, o medo ecológico e o medo escatológico, o medo ofensivo e o medo defensivo, o medo visceral e o medo metafísico, o medo cómico e o medo trágico, o medo real e o medo imaginário, o medo diurno e o medo nocturno, o medo do que se conhece e o medo do que se desconhece.
Sagaz conhecedor do coração humano e das trevas que nele se enredam e adensam, o escritor Joseph Conrad lembrou, advertindo:
O medo permanecerá sempre. Um homem pode destruir muitas coisas dentro de si: o amor, a fé, o ódio e mesmo a dúvida. Mas por mais tempo que viva, ele não pode destruir o medo: o medo, subtil, indestrutível e terrível, que atravessa o seu ser; que tinge os seus pensamentos; que espreita no seu coração; que observa nos seus lábios a luta do seu último suspiro.
Gilbert & George, FEAR [MEDO], 1984 © Gilbert & George
Miriam Cahn, unser früling, 2004/2020/2021 + 30/04/2023 © Fotografia: Cortesia do artista; Galerie Jocelyn Wolff, Paris; e Meyer Riegger, Berlim
O psicanalista Carl Gustav Jung aconselhou: «Descubram aquilo de que uma pessoa tem mais medo e sabereis de que será feita a próxima etapa do seu desenvolvimento.»
Há uma passagem da Divina Comédia que poderia servir de epígrafe ao amargo texto do nosso tempo. Logo no início («O Inferno»), Dante Alighieri lança a carta do medo:
Ai, quão dizer como esta era é coisa dura
esta selva selvagem e áspera e forte
que no pensar renova o medo
Nos nossos dias, em que tudo o que ascende cede o seu lugar a tudo o que decai, vemos, ouvimos e lemos, nesta «selva selvagem» em que vivemos e morremos, a palavra «medo» em todo o lado. No papel imprenso dos jornais e das revistas que agarramos nas nossas mãos impacientes ou na fosforescência móvel dos ecrãs que chega aos nossos olhos embaciados, nos grandes títulos das notícias repetitivas ou nas fotografias dos cartazes das manifestações de rua, aí aparece ela, essa palavra feita de tristeza nervosa e de aflição agitada, composta com letras inquietas e portadora de mensagens assustadas e assustadoras.
O medo é a circunferência que cerca o círculo escuro onde habitamos, sem saber como dele sair. Aos antiquíssimos medos somaram-se, com razões ou sem elas, novos e sucessivos medos em avalanche. Hoje, há medos que pertencem a várias gerações de medos: medos que geram medos que geram medos que geram medos, numa cadeia ininterrupta e descomunal. Hoje, o medo esmaga a vida e já não serve, como serviu algumas vezes no passado, para lhe dar uma força alta de resistência, de indignação e de protesto.
A nossa «modernidade líquida», com a sua obsessão pela velocidade, a competição, a mudança, a flexibilização, o efémero, a fama, o crescimento, o lucro, o êxito, o triunfo, ficou sem bússola segura, pondo a agulha a girar desordenadamente numa indistinção aleatória e arbitrária de pontos cardeais, causando desnorte, incerteza, insegurança e instabilidade.
Como explica Zygmunt Bauman, em Medo Líquido, assim se construiu o grande habitat deste medo fluido, omnipresente e omnipotente, derramado sob a forma de muitos medos: medo do outro, transformado em ódio ao outro e em culto egolátrico de si-mesmo, medo da vida e medo do mundo, medo do futuro e medo da morte («O homem não tem poder sobre nada enquanto tiver medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo», diz Tolstói), medo da natureza e medo da tecnologia. Nesta floresta de enganos e armadilhas, as pessoas são caçadoras ou presas, sentindo-se permanentemente em perigo — num perigo feito de muitos perigos.
Que desvairado tempo é este, que, esquecido ou alheado dos trágicos ensinamentos vindos de um tempo ainda tão próximo e presente, voltou a usar o medo contra a liberdade, fazendo dele um negócio indecoroso e um instrumento eficaz de submissão e de domesticação, uma arma agressiva de manipulação das consciências e das escolhas, uma máquina poderosa de controlo e domínio das vontades, dos desejos, dos pensamentos, dos actos, das aspirações e dos comportamentos?!
«Nesta grande época» (como, recorrendo à ironia mordaz e mortífera de Karl Kraus, a designámos na primeira edição da Electra), a que chamamos nossa, o medo é um novo, inesgotável e vertiginoso ópio que permite e justifica todas as crueldades, credulidades, monstruosidades, abusos, cobardias, abstenções, falsificações, fugas, calculismos, conformismos, oportunismos, servidões, rendições, reconversões, reescritas, recuos, resignações.
Herdeiro infielmente fiel do povo do Êxodo, foi Franz Kafka quem disse que o importante é procurar — e encontrar — uma chave para abrir as portas que, como no castelo do Barba Azul, nos mostram o horror que o nosso medo quer ignorar, mesmo quando a nossa lucidez deseja conhecer. Lembrar isto, quando temos, de novo, em frente dos olhos os terríveis acontecimentos da guerra, da catástrofe, da destruição, da fome e do aniquilamento, é elaborar uma metafísica do medo e uma mnemónica do mal. Mesmo com a memória e a experiência do medo, o ser humano é o animal que não sabe aprender a ser humano. Mais: que regressa e recupera obstinadamente o inumano. No presente e no futuro, como no passado, isso é que faz medo!
O autor de O Processo, que conhecia como ninguém a relação reveladora e acusatória entre os animais humanos e os animais não humanos, vivia no medo, e a sua obra, atravessada por esta palavra tremida e tremenda, foi uma saída para aquilo que não tinha saída. Por isso se tornou profética, pedagógica, profiláctica.
No violento início da Carta ao Pai, sem perder tempo com rodeios e dirigindo a sua atenção, direita e directa, ao vexatório assunto que o perseguia e cercava, Kafka escreve:
Meu querido pai, perguntaste-me há pouco tempo por que razão digo que tenho medo de ti. Como de costume, não soube o que responder, em parte precisamente devido ao medo que sinto de ti, mas também porque para fundamentar esse medo seria preciso entrar em muitos pormenores, que nem de longe conseguiria ter presentes ao falar. E se tento por este meio responder-te por escrito, o resultado continuará a ser muito incompleto, porque também escrever o medo e as suas consequências perturba a comunicação contigo, e a escala da matéria se situa muito além da minha memória e do meu entendimento.
Medo de viver e de morrer, medo de amar e de escrever, medo de tudo e de todos, medo da noite e da não-noite, medo da figura e do fantasma, medo da saúde e da doença, medo da solidão e da companhia, medo da lucidez e da loucura, medo do que acontece e do que não acontece, medo do medo e da falta dele, não surpreende que este homem tímido, ao mesmo tempo temeroso e temerário, que fez da sua fragilidade uma agilidade imparável, tenha exclamado: «O meu medo é a minha substância e, provavelmente, a melhor parte de mim.»
Marcel Proust, o grande e obsessivo entomologista do comportamento dos insectos humanos, perspicaz vedor da verdade que existe e se desenvolve nos paradoxos, desequilíbrios, assimetrias e contradições, analisou com a sua potente lupa mental: «É falso acreditar-se que a escala dos medos corresponde à escala dos perigos que os inspiram. Pode ter-se medo de não dormir e não de um duelo sério, medo de um rato e não de um leão.» E alertava: «É preciso nunca ter medo de ir demasiado longe, porque a verdade está além.»
No Evangelho de São Marcos, a Ressurreição de Jesus é contada assim:
Passado o Sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir Jesus. E no primeiro dia da semana, foram muito cedo ao sepulcro, mal o sol havia despontado. E diziam entre si: «Quem removerá a pedra do sepulcro para nós?»
Levantando os olhos, elas viram removida a pedra, que era muito grande. Entrando no sepulcro, viram, sentado do lado direito, um jovem, vestido de roupas brancas, e assustaram-se. Ele lhes falou: «Não tenhais medo. Buscais Jesus de Nazaré, que foi crucificado. Ele ressuscitou. Já não está aqui. Eis o lugar onde o depositaram. Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis como vos disse.» Elas saíram do sepulcro e fugiram trémulas e amedrontadas. E a ninguém disseram coisa alguma por causa do medo.
A este momento crucial do relato evangélico sobre o acontecimento fundador de uma fé e de uma religião poderíamos chamar uma dialéctica do medo. Exarada num livro escrito em nome do temor a Deus, a exclamação «Não tenhais medo!» tem sido reiterada, repetida, renovada, nas últimas décadas, por sucessivos papas.
Olhando os sinais dos tempos e a grosseria com que se manifestam, talvez esses pontífices contemporâneos tenham compreendido que o apelo à coragem, sempre violenta, de não ter medo era, mesmo para uma Igreja que, embora sujeita a afundar-se nos mais arriscados abismos humanos, se crê fundada divinamente, uma garantia possível de ressurreição.
Ao pôr o dossier desta sua edição número 30 sob o signo de «O medo», a Electra prossegue o retrato que está a fazer, sem medo (acreditamos), do nosso tempo, do nosso mundo e da aliança funesta entre o pior que um e outro têm e viciosamente cultivam como um ar irrespirável ou uma planta venenosa. Como dizia, nessas antigas idades de que o livro Conjurer la peur fala, o grande pregador franciscano São Bernardino de Siena: «[…] e todas as coisas que fazemos, fazemo-las no medo». Poderíamos nós acrescentar que é isso mesmo o que se passa connosco, agora, embora, por uma insólita cegueira, continuemos a repetir o discurso vazio, voluntarista e vitorioso do optimismo, do sucesso e do triunfo.
Olhando atentamente, vigilantemente, criticamente os lugares onde o presente se constrói e se destrói, onde o passado se mistifica e se pirateia e o futuro se condiciona e se ameaça, vemos o medo ser usado como uma tecnologia fundamental de uma máquina destruidora, cuja sinistra missão é o arrebatamento tirânico do poder, a depreciação indecente da vida, a mercantilização grosseira do Universo, a devastação imparável dos recursos, o aviltamento do bem comum e do interesse geral, a inversão utilitária e interesseira dos valores, a credibilização insolente da contrafacção e da mentira, a manipulação boçal dos instintos e dos impulsos, a perversão totalitária da comunicação humana.
É por isso que, ao contemplarmos de frente o tema do medo e dos seus desastres, não queremos apenas compreender o mundo. Queremos também transformá-lo!



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