Assunto

A cultura do medo

Frank Furedi

O tema do medo, tão presente no discurso político e cultural desta época em que vivemos, é objecto de uma elaboração teórica de grande alcance que entra em territórios culturais, sociais e políticos. O autor desses trabalhos que, além do mais, descrevem e analisam o funcionamento do medo chama-se Frank Furedi, é professor emérito na Universidade de Kent e especialista na sociologia do medo. Nesta entrevista, ele explica como funciona a lógica do medo.

Frank Furedi é professor emérito de Sociologia na Universidade de Kent. A ele se deve uma sociologia do medo, que inaugurou em 1997, com um livro intitulado Culture of Fear: Risk-Taking and the Morality of Low Expectation. Nessa altura, «cultura do medo» era um conceito novo e até um pouco estranho, o que dava ao livro o aspecto de pioneiro. Furedi procurava então explicar que a preocupação com a segurança se tinha tornado tão obsessiva na nossa sociedade que se criou uma alergia ao risco e, por conseguinte, desenvolveu uma atitude de recuo em relação a novas experiências e ao desconhecido: afastar-se de todo o risco, escreve Furedi, significa anular o espítito de exploração e experimentação. Um exemplo da atitude de tipo paranóico perante o risco, encontra-a o autor de Culture of Fear na hiperprotecção a que os pais submetem os filhos. Passou a ser até mal visto, senão mesmo prova de negligência, deixar os filhos irem sozinhos para a escola. A cultura do medo tem ainda outra consequência: a divergência entre a percepção e os factos, entre o perigo real e o perigo construído como um fantasma. No limite, o problema não é o medo de qualquer coisa, mas o medo do medo, isto é, o medo que se torna um problema em si mesmo. Esta forma autotélica da propagação do medo determina que «a única coisa de que devemos ter medo é da cultura do medo», isto é, a cultura que redefine todos os problemas usando a gramática do medo, de efeitos comprovados: afasta as pessoas, produz uma atmosfera de suspeição e encoraja um estilo depressivo de autodefinição muito presente na cultura contemporânea.

Cerca de vinte anos depois de Culture of Fear, é publicado How Fear Works: Culture of Fear in the Twenty-First Century. Neste livro, Furedi prossegue a sua investigação sociológica, tentando compreender o modo como se manifesta o medo no século XXI. Verifica então que se acentuou o uso da retórica do medo e que este se tornou o principal instrumento de uma ideologia. A regra do medo, agora, é a da amplificação de algumas ameaças de maneira desproporcionada em relação aos perigos reais. E, por outro lado, existe a tendência para tratar no âmbito médico-psicológico os problemas que dantes eram considerados problemas morais ou existenciais.

Nesse intervalo de vinte anos, a «cultura do medo» avançou de maneira cada vez mais poderosa e expandiu-se à medida que emergia uma consciência trágica de que a sociedade e a própria humanidade estão confrontadas com a ameaça de forças destrutivas. A cultura do medo no século XXI é determinada por uma explosão de novos perigos que convocam nomes de grande peso: apocalipse, colapso, catástrofe. A imaginação colectiva trabalha actualmente para a pior hipótese possível, a que provoca mais medo: a hipótese de que o futuro é negativo ou, até, de que não vai haver futuro. Tornámo-nos uma sociedade presentista, separada do passado e assustada com o futuro. Resultado: o medo tornou-se a perspectiva cultural dominante.

A partir do final dos anos 90, segundo a cronologia traçada por Frank Furedi, deu-se uma politização do medo. Em The Politics of Fear. Beyond Left and Right, um livro de 2005, há a afirmação de que todos os partidos adoptam a política do medo, mas cada um escolhe o «seu» medo. O problema da imigração é o medo preferencial dos partidos de extrema-direita e populistas. Os partidos de esquerda, por sua vez, elegem o medo da extinção da humanidade. Seja como for, o medo é essa «big thing» que o nosso tempo fez emergir como uma cultura.

É de todas estas questões desenvolvidas nos seus três livros sobre o tema do medo que fala Furedi nesta entrevista.

francis bacon

Francis Bacon, Figure Turning [Figura em rotação], 1962 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres © The Estate of Francis Bacon / DACS, Londres / SPA, Lisboa

 

francis bacon

Francis Bacon, Study of Figure in a Room [Estudo de figura numa sala], 1953 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres © The Estate of Francis Bacon / DACS, Londres / SPA, Lisboa

 

ANTÓNIO GUERREIRO  O seu primeiro livro sobre o medo intitula-se Culture of Fear. Este título indica desde logo que nele se vai desenvolver a ideia de que o medo se difundiu como uma construção cultural. A nossa época tem uma obsessão pelo medo?

FRANK FUREDI  Acho que sim. Demorei muito tempo a compreender o funcionamento do medo. Comecei por me aperceber destes pânicos morais por causa de coisas sem sentido. Por exemplo, pânicos provocados por conspirações sobre abuso de crianças, pânicos a propósito de tudo, desde o clima ao terrorismo global. Todas estas questões eram vistas não só como um problema, mas também, de forma muito alarmista, como uma ameaça. A nossa definição de ameaça tem estado em permanente expansão. Uma das coisas a que prestei atenção foi à forma como as crianças são hoje vistas. Um dia, dei por mim a pensar que agora as crianças não podem ir sozinhas para a escola, tal como eu ia, porque supostamente é muito perigoso. Quando eu era miúdo, não era menos perigoso do que agora, mas a forma como se via o problema era muito diferente. E esta ideia difundiu-se por todo o lado. Lembro-me de um dos meus amigos decidir deixar o filho ir para a escola sem a companhia de um adulto e de ter sido muito criticado por «pôr a criança em perigo». Então, perguntei-me a mim mesmo se não nos teríamos tornado quase viciados no medo. Fui-me apercebendo de vários motivos ao longo dos anos, mas o mais importante era simplesmente a falta de um vocabulário para dar sentido à experiência humana. Porque na altura em que eu estava a escrever, as velhas ideologias do comunismo, liberalismo, socialismo ou conservadorismo já não inspiravam as pessoas, não explicavam nada. Não tínhamos qualquer interpretação filosófica ou religiosa do mundo e, de certo modo, ficámos sem uma gramática com a qual pudéssemos dar sentido à experiência humana. Penso terem sido estas as circunstâncias que transformaram os problemas comuns em ameaças, e as ameaças em ameaças existenciais. E, assim, de ano para ano, o alarmismo foi-se tornando mais forte.

AG  Quando publicou esse livro, em 1997, a «cultura do medo» não era tão poderosa e evidente como é hoje. O que é que se alterou entretanto?

FF  É interessante que diga isso, porque quando escrevi Culture of Fear as pessoas estavam a aperceber-se da realidade desta cultura. Cinco anos depois, toda a gente começou a usar a expressão «cultura do medo». Se olharmos para os jornais, cada vez mais se fala sobre este assunto. Penso que, paralelamente ao crescimento do medo, houve uma redefinição crescente do que era um ser humano, do que era a subjectividade humana. E, cada vez mais, se passou a ver os seres humanos como não tendo capacidade para lidar com os problemas. Aquilo a que chamo «diminuição da subjectividade» significa basicamente que não se espera que as pessoas saibam lidar com problemas difíceis. Muitas vezes, se as pessoas se confrontam com problemas ou se enfrentam uma crise, em vez de uma explicação social ou cultural, procuram uma explicação psicológica. Por conseguinte, as pessoas são como que infantilizadas, vistas como incapazes de lidar com estas coisas, sobretudo os mais jovens, os estudantes universitários. À medida que a subjectividade humana declina, a capacidade de lidar com os problemas também fica comprometida. Por conseguinte, nestas circunstâncias, o sentimento de perigo, o alarmismo e o medo são cada vez mais disseminados.

AG  Cada época tem os seus medos. Podemos dizer o mesmo para
cada sociedade?

FF  Sim. Por conseguinte, todas as sociedades ao longo da História têm o seu próprio vocabulário do medo. Lembro-me sempre de que a geração dos meus avós tinha medo do desemprego maciço dos anos 30. A geração dos meus pais estava muito preocupada com com o conflito nuclear, durante a Guerra Fria. E depois houve outros medos. Mas o que é interessante, e é sobre isso que escrevo, é que no passado havia normalmente um medo que unia as pessoas. Todos tinham medo do conflito nuclear. Todos estavam preocupados com o desemprego, ou com a palavra de Deus, ou com a ameaça da fome. Enquanto no mundo em que vivemos não temos apenas um, mas muitos medos diferentes, e isso muda completamente as coisas. Se me tivesse entrevistado há dez anos, teríamos falado da ameaça do terrorismo global. Toda a gente falava disso. Hoje, falamos de alterações climáticas e do fim do mundo devido à catástrofe ambiental.

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