Uma das principais figuras da chamada história social da arte, T. J. Clark é autor de algumas das análises da modernidade cultural mais penetrantes até hoje. Recentemente, tem vindo a defender o distanciamento estético contra o regime contemporâneo de proliferação visual a que chamou de «mundo-imagem». Entre os seus livros mais importantes contam-se Image of the People: Gustave Courbet and the 1848 Revolution (1973); Farewell to an Idea: Episodes from a History of Modernism (1999); Picasso and Truth: From Cubism to Guernica (2013); Heaven on Earth: Painting and the Life to Come (2018); e If These Apples Should Fall: Cézanne and the Present (2022). T. J. Clark foi professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, na Universidade de Harvard e na Universidade de Leeds, e publica regularmente crítica de arte e literatura na London Review of Books. Em conversa com a Electra, T. J. Clark fala sobre o seu livro mais recente, Those Passions: On Art and Politics, de 2025, uma colectânea dos seus ensaios das últimas décadas, e reflecte sobre uma vida inteira a escrever a propósito da relação da arte com a política, incluindo os eventos contemporâneos que nos esperam pela frente.
Um dos historiadores da arte mais importantes dos últimos cinquenta anos, T. J. Clark, cujo trabalho redireccionou esta disciplina das suas preocupações tradicionais com o estilo e a forma para um foco nas condições sociais e políticas da modernidade, conversa com a Electra sobre os crescentes problemas da imagem na era contemporânea.
AFONSO DIAS RAMOS Acaba de ser lançada uma antologia de ensaios seus dos últimos vinte e cinco anos que focam um período histórico no qual a arte e a política se tornaram uma questão por si só. O que suscitou este livro? E como foi a experiência de revisitar esses ensaios a partir do panorama político actual?
T.J. CLARK Quando comecei a escrever sobre arte, nas décadas de 60 e 70, queria, acima de tudo, compreender o papel que ela poderia desempenhar numa situação revolucionária. Os meus dois primeiros livros foram sobre a resposta dos artistas de esquerda e de direita — Courbet, Daumier, Delacroix, Baudelaire, Millet — ao período provisório e caótico que se seguiu à Revolução de 1848 em França. Esse tipo de questionamento nunca desapareceu do meu trabalho — era, seguramente, um eixo central no livro Farewell to an Idea —, mas foi sendo cada vez mais acompanhado (ou desviado, diriam outros) por uma vontade de definir a natureza específica da comunicação visual e de encontrar uma forma de escrita que respeite a diferença entre arte e linguagem. A meu ver, esse imperativo não era «não-político»: era uma resposta ao nivelamento e à banalização da imagem que via acontecer à minha volta como uma das principais facetas da aceleração e da disseminação maciça de um «mundo-imagem», que, supostamente, todos nós estaríamos contentes por ter entre mãos. Eu pretendia reafirmar tudo aquilo que o mundo-imagem já tinha sido, bem como as intensidades e as complexidades de que é capaz uma imagem não estando subtraída ao serviço de uma qualquer mercadoria idiota. Em todo o caso, continuei a escrever directamente sobre «arte-e-política» em ensaios e em artigos. E à medida que as lutas políticas em torno do uso e controlo do novo aparato da imagem se foram intensificando nas duas últimas décadas (especialmente nos EUA), apercebi-me de que se calhar valeria a pena reunir esses ensaios dispersos, revendo e tentando transformá-los numa espécie de totalidade. Um ou outro amigo pressionou-me a fazê-lo. Foi difícil. Acho que a experiência de olhar novamente para os ensaios me deixou com a sensação de que, pelo menos, os assuntos que levantava naquilo que escrevia — em particular, sobre a necessidade contínua da esquerda em confrontar a natureza da «sociedade de consumo» e a sua maquinaria do espectáculo — se mantêm prementes, indispensáveis e muito pouco explorados. Mas devo sublinhar que este livro não é um guia sobre arte e política, e muito menos um manual para a prática artística no presente. Contém uma variedade de estudos de caso e procura demonstrar o quão estranha e frequentemente paradoxal é essa tarefa de «pintar politicamente». Como explicar que a inesquecível imagem da revolução legada pelos nossos antepassados, A Liberdade Guiando o Povo em 1830 de Delacroix, tenha sido pintada por um reaccionário descontente que, vinte anos mais tarde, estaria a aplaudir a supressão da Revolução de 1848 por parte de Napoleão III? Até que ponto poderemos confiar na celebração (ou será abominação?) do neo-leninismo da década de 60 por Gerhard Richter, nas suas imagens cinzentas e desfocadas do final dos Baader-Meinhof? Olhando para trás, como poderíamos interpretar as experiências da «arte-tornada-política» protagonizadas pela Internacional Situacionista? Será possível retirar alguma lição da miserável história do envolvimento modernista nos anos iniciais da União Soviética? E por aí fora.
ADR A ideia de «estranheza» é central em quase todos os livros que escreveu — quer se refira a Courbet, Manet, Giotto ou Bruegel. De que forma é que essa ideia moldou o seu próprio entendimento da arte e da política?
TJC Agora que diz isso, noto que é um tema recorrente. Julgo que há uma teia de pressupostos por trás dessa palavra. É certo que, enquanto antigo modernista, me mantenho fiel à ideia de que a arte é, entre muitas outras coisas, um modo de o homo sapiens manter o mundo à distância, fazendo com que a ordem presente das coisas pareça estranha — não-natural, improvável e, por isso, passível de ser transformada. Suponho que tudo isto assente numa antropologia subentendida. O homo sapiens parece-me ser um animal estranho e em constante estranhamento, apesar de todo o desejo (pulsão) contraditório da espécie pela conformidade e pela colectividade. A arte que mais admiro e com a qual aprendo reconhece estas duas facetas do mundo, bem como a tensão constante entre ambas. E Bruegel, mais do que tudo, continua a ser a minha pedra-de-toque.

Paul Cézanne, La tentation de saint Antoine [A tentação de Santo António], 1874 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres / Kasama Nichido Museum of Art, Kasama

Paul Cézanne, La tentation de saint Antoine [A tentação de Santo António], 1870 © Fotografia: Stiftung Sammlung E. G. Bührle, Zurique
"Precisamos, seguramente, de uma política (e de uma arte) que encontre um registo para descrever e denunciar a ordem presente."
ADR Destacou recentemente James Ensor, Pier Paolo Pasolini e Andrei Platonov como exemplos ímpares nesse sentido. Porque considera que a estranheza destas figuras entre os meios esquerdistas adquiriu particular relevância hoje?
TJC Ainda defendo esse meu trio peculiar (a ligação entre Ensor e Bruegel não poderia ser mais clara, e em Platonov parece que estamos a vaguear por uma paisagem retirada de O Dia Sombrio ou de O Triunfo da Morte de Bruegel). Acho que aquilo que torna estes artistas uma referência necessária para o presente é o facto de partilharem um sentido do terrível que é a sociedade burguesa… e do quão terrível é a sua desintegração no caos e na conformidade (uma conformidade coerciva) de forma interligada. Precisamos, seguramente, de uma política (e de uma arte) que encontre um registo para descrever e denunciar a ordem presente. Não creio que chegaremos lá «modernizando» simplesmente os nossos lugares-comuns sobre o capitalismo, a NATO, o nacionalismo, a economia de guerra permanente, etc. Creio que estes vectores da política já estão gastos. Ou então são obviamente desajustados por si mesmos — não são convincentes, são abstractos, obsoletos ou estão contaminados pelo dogma. Se a oposição da esquerda ao presente quiser relacionar-se com as massas de pessoas neste mundo no rescaldo da classe e da consciência de classe, terá de se focar no carácter da nossa vida quotidiana. A pobreza da sociedade do espectáculo: é esse o elo mais fraco na nossa panóplia de opressões. É o empobrecimento da vida a que nos encontramos sujeitos, todos nós (especialmente os super-ricos… mas eles que se danem!), é a caricatura das possibilidades humanas que nos são dadas e com as quais temos de viver, não se trata apenas da diminuição dos nossos «padrões de vida».
"O presente não reconhecerá a sua agonia até chegar a um acordo com esse passado que imagina já ter ultrapassado."

James Ensor, The Temptation of Saint Anthony [A tentação de Santo António], 1887 © Fotografia: Scala, Florença / Art Resource, Nova Iorque / The Art Institute of Chicago, Chicago
ADR Um sentimento do trágico parece ter tomado conta do seu trabalho recente. No seu livro sobre Picasso, considera que talvez hoje nos viremos para a Guernica com certa nostalgia, para ter acesso ao sofrimento e horror numa escala que desconhecemos. Mas não estará isso a mudar, com o colapso da chamada ordem mundial liberal do pós-guerra? O que pode significar este sentimento do trágico hoje em dia?
TJC Acho que a minha reflexão anterior também se prende com esta questão. Julgo que tem razão quando diz que estamos a entrar numa nova desordem mundial. A resposta de quase todo o mundo à guerra em Gaza (com excepção dos EUA e dos seus lambe-botas) é sinal disso. Aquilo que a hegemonia norte-americana sempre envolveu tornou-se agora visível e «inaceitável» (excepto pelos milionários do American Israel Public Affairs Committee no Congresso norte-americano). Existe um sentimento de horror e de descrença palpável. O mistério da crueldade humana, da hubris e do engano próprio tem-se revelado, dia após dia, ano após ano, despojado das suas habituais máscaras e desculpas. A tragédia (o modo, a estrutura) foi um dos meios que herdámos para tirar as medidas de uma tal atrocidade. Claro que, por si só, o sentimento trágico não leva a, nem fornece, qualquer modelo de resposta política aos horrores do mundo. Mas parece-me uma necessidade preliminar para se fundar tal política. O facto de a esquerda evitar a tonalidade trágica — com a sua tendência para derivar numa forma qualquer de optimismo tecnológico ou para encolher os ombros face aos horrores do seu próprio passado (terror, totalitarismo, Estaline, Mao) como uma «aberração», mesmo que lamentável, no caminho do progresso — deixa-a, a meu ver, impotente face a Xi Jinping. Ou mesmo a Trump, essa personagem saída de Aristófanes.
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