Furo
Sakiko Nomura: sonhos fotográficos
José Bértolo

Neste «Furo», apresentamos um conjunto de imagens inéditas da fotógrafa japonesa Sakiko Nomura, um dos nomes mais prestigiados da fotografia japonesa actual. A sua vasta e poderosa obra, que balança entre a claridade e o mistério, quase parece feita contra a linguagem verbal, acreditando que há coisas fundamentais que apenas a fotografia permite transmitir. Num ensaio muito informado, o professor, ensaísta e fotógrafo José Bértolo apresenta-nos a obra desta artista que tem exposto nos mais conceituados museus e galerias, analisando a sua singularidade e o seu poder de subverter a tradição e as suas leis.

A década de 90 constitui um momento incontornável na reflexão sobre o lugar das mulheres na fotografia japonesa. Foi neste período que Hiromix, Mika Ninagawa e Yurie Nagashima emergiram como representantes de um movimento que contribuiu para a visi- bilidade do trabalho das fotógrafas mulheres no Japão. O processo não decorreu sem controvérsias1, no entanto, num país onde as mulheres tinham sido, até então, relegadas sobretudo à função de objecto visual, a ser capturado pelo olhar masculino dos fotógrafos.

Na mesma década surgiu, com certa reserva, Sakiko Nomura. Trabalhando ao mesmo tempo com discrição e afinco, a um ritmo seguro, persistente, Nomura tornou-se no espaço de trinta anos um dos nomes mais respeitados da fotografia japonesa. O facto de não ter sido associada ao movimento feminino no início da sua carreira fez com que escapasse à etiqueta de «fotógrafa mulher». Mas um tal desvio, curiosamente, poderá ter contribuído para que atingisse este mesmo estatuto de uma forma ainda mais inequívoca, por comparação com o grupo de fotógrafas antes referido.

Por ironia, o selo colado a Nomura ao longo destes anos representa o exacto contrário. Trata-se de Nobuyoshi Araki, cujo nome figura entre os mais emblemáticos praticantes de um certo olhar masculino sobre as mulheres, decisivamente informado pelo desejo e pela abertura ao imaginário. Sakiko Nomura era estudante de fotografia quando, em 1991, se tornou assistente de Araki, com quem viria a trabalhar durante vários anos.

Esta história é repetida em praticamente todos os textos sobre Sakiko Nomura, o que talvez aconteça tanto pelo seu carácter de fait-divers quanto por razões retóricas. Por um lado, o percurso biográfico associa Nomura à figura de Araki, que é provavelmente o fotógrafo japonês mais célebre no Ocidente. Por outro lado, permite apresentar a obra de Nomura como uma espécie de antítese da obra do mestre. É que, se no centro da fotografia de Araki está a figura da mulher nua, o homem nu está no centro da prática de Nomura.

Elegendo a nudez masculina como elemento cimeiro do seu trabalho fotográfico, Nomura subverte a tradição da fotografia japonesa — e mundial, na verdade —, segundo a qual os homens observam as mulheres. Este facto poderia torná-la um arauto da causa feminina nas artes. Porém, Nomura furta-se a esse papel, recusando, nas palavras de Marc Feustel, «interpretações da obra como comentário social acerca de estereótipos de género»2. Ainda que o gesto não seja deliberado, é evidente que a sua potência social e política é substancial e não pode ser negligenciada, colocando Nomura num grupo restrito de fotógrafas — com Momo Okabe e Mayumi Hosokura — que, de forma mais ou menos explícita, mas passando muito pela representação não convencional do corpo masculino, questionam as estruturas rígidas e as relações de poder que regem a sociedade japonesa.

Não obstante a dimensão sociopolítica das obras destas fotógrafas, aquilo que as singulariza e as torna verdadeiramente interessantes é o facto de a sua força não ficar cingida ao discurso. Michiko Kasahara colocou esta mesma questão no texto que integra o catálogo da primeira grande exposição no Ocidente dedicada a Sakiko Nomura, na MAPFRE, em Madrid: «Voltei a ver todos os seus livros, e a minha conclusão é a de que a sua obra, a sua progressão, e os próprios livros não requerem uma explicação, recusam-na, assim como rejeitam a catalogação, pois tentam ser “apenas fotografia”.»3

Resumindo: o lado sociopolítico da obra de Sakiko Nomura é inquestionável, e importante, mas resulta de uma contingência do seu olhar, dado que a sua intenção, enquanto autora, não passa por reivindicar um «olhar feminino», mas sim por desenvolver o seu olhar pessoal, fazendo «apenas fotografias». Em entrevista a Lena Fritsch, Nomura explica que o seu interesse pela fotografia está intimamente relacionado com o seu interesse pelo real: «Tiro fotografias de tudo o que o mundo me oferece […]. Penso que a realidade nos dá tantos motivos interessantes — é por isso que trabalho com fotografia. Não com pintura ou literatura, mas com fotografia.»4

Eliminadas as explicações sociopolíticas do caminho, o que resta é uma questão à qual a crítica não tem conseguido responder adequadamente: que fotógrafa é Sakiko Nomura? «¿Qué clase de artista es Sakiko Nomura?» é, aliás, o título do ensaio de Kasahara, que termina, não sem ironia, com a autora a indiciar uma certa insegurança relativamente à sua capacidade de ter conseguido responder a essa pergunta: «Que tipo de artista é Sakiko Nomura? É possível que quem leu o meu texto tenha ficado insatisfeito. […] A única certeza é que o interesse de Nomura se dirige sempre à fotografia, e que procurará sempre transmitir coisas que só a fotografia possibilita.»5

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1. Cf. Pauline Vermare, «I’m so happy you are here», I’m So Happy You Are Here: Japanese Women Photographers from the 1950s to Now, Nova Iorque: Aperture, 2024, pp. 25–28.
2. Marc Feustel, R. Lederman, «Piercing the Paper Ceiling (An Illustrated Bibliography)», I’m So Happy You Are Here, op. cit., p. 327.
3. Michiko Kasahara, «¿Qué clase de artista es Sakiko Nomura?», Sakiko Nomura, Madrid: Fundación MAPFRE, 2025, p. 27.
4. Lena Fritsch, Ravens & Red Lipstick: Japanese Photography since 1945, Nova Iorque: Thames & Hudson, 2018, p. 227.
5. Michiko Kasahara, op. cit., p. 34.