A década de 90 constitui um momento incontornável na reflexão sobre o lugar das mulheres na fotografia japonesa. Foi neste período que Hiromix, Mika Ninagawa e Yurie Nagashima emergiram como representantes de um movimento que contribuiu para a visi- bilidade do trabalho das fotógrafas mulheres no Japão. O processo não decorreu sem controvérsias1, no entanto, num país onde as mulheres tinham sido, até então, relegadas sobretudo à função de objecto visual, a ser capturado pelo olhar masculino dos fotógrafos.
Na mesma década surgiu, com certa reserva, Sakiko Nomura. Trabalhando ao mesmo tempo com discrição e afinco, a um ritmo seguro, persistente, Nomura tornou-se no espaço de trinta anos um dos nomes mais respeitados da fotografia japonesa. O facto de não ter sido associada ao movimento feminino no início da sua carreira fez com que escapasse à etiqueta de «fotógrafa mulher». Mas um tal desvio, curiosamente, poderá ter contribuído para que atingisse este mesmo estatuto de uma forma ainda mais inequívoca, por comparação com o grupo de fotógrafas antes referido.
Por ironia, o selo colado a Nomura ao longo destes anos representa o exacto contrário. Trata-se de Nobuyoshi Araki, cujo nome figura entre os mais emblemáticos praticantes de um certo olhar masculino sobre as mulheres, decisivamente informado pelo desejo e pela abertura ao imaginário. Sakiko Nomura era estudante de fotografia quando, em 1991, se tornou assistente de Araki, com quem viria a trabalhar durante vários anos.
Esta história é repetida em praticamente todos os textos sobre Sakiko Nomura, o que talvez aconteça tanto pelo seu carácter de fait-divers quanto por razões retóricas. Por um lado, o percurso biográfico associa Nomura à figura de Araki, que é provavelmente o fotógrafo japonês mais célebre no Ocidente. Por outro lado, permite apresentar a obra de Nomura como uma espécie de antítese da obra do mestre. É que, se no centro da fotografia de Araki está a figura da mulher nua, o homem nu está no centro da prática de Nomura.
Elegendo a nudez masculina como elemento cimeiro do seu trabalho fotográfico, Nomura subverte a tradição da fotografia japonesa — e mundial, na verdade —, segundo a qual os homens observam as mulheres. Este facto poderia torná-la um arauto da causa feminina nas artes. Porém, Nomura furta-se a esse papel, recusando, nas palavras de Marc Feustel, «interpretações da obra como comentário social acerca de estereótipos de género»2. Ainda que o gesto não seja deliberado, é evidente que a sua potência social e política é substancial e não pode ser negligenciada, colocando Nomura num grupo restrito de fotógrafas — com Momo Okabe e Mayumi Hosokura — que, de forma mais ou menos explícita, mas passando muito pela representação não convencional do corpo masculino, questionam as estruturas rígidas e as relações de poder que regem a sociedade japonesa.
Não obstante a dimensão sociopolítica das obras destas fotógrafas, aquilo que as singulariza e as torna verdadeiramente interessantes é o facto de a sua força não ficar cingida ao discurso. Michiko Kasahara colocou esta mesma questão no texto que integra o catálogo da primeira grande exposição no Ocidente dedicada a Sakiko Nomura, na MAPFRE, em Madrid: «Voltei a ver todos os seus livros, e a minha conclusão é a de que a sua obra, a sua progressão, e os próprios livros não requerem uma explicação, recusam-na, assim como rejeitam a catalogação, pois tentam ser “apenas fotografia”.»3
Resumindo: o lado sociopolítico da obra de Sakiko Nomura é inquestionável, e importante, mas resulta de uma contingência do seu olhar, dado que a sua intenção, enquanto autora, não passa por reivindicar um «olhar feminino», mas sim por desenvolver o seu olhar pessoal, fazendo «apenas fotografias». Em entrevista a Lena Fritsch, Nomura explica que o seu interesse pela fotografia está intimamente relacionado com o seu interesse pelo real: «Tiro fotografias de tudo o que o mundo me oferece […]. Penso que a realidade nos dá tantos motivos interessantes — é por isso que trabalho com fotografia. Não com pintura ou literatura, mas com fotografia.»4
Eliminadas as explicações sociopolíticas do caminho, o que resta é uma questão à qual a crítica não tem conseguido responder adequadamente: que fotógrafa é Sakiko Nomura? «¿Qué clase de artista es Sakiko Nomura?» é, aliás, o título do ensaio de Kasahara, que termina, não sem ironia, com a autora a indiciar uma certa insegurança relativamente à sua capacidade de ter conseguido responder a essa pergunta: «Que tipo de artista é Sakiko Nomura? É possível que quem leu o meu texto tenha ficado insatisfeito. […] A única certeza é que o interesse de Nomura se dirige sempre à fotografia, e que procurará sempre transmitir coisas que só a fotografia possibilita.»5
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