Assunto
Mais de dois sexos
Paul B. Preciado

Conhecido internacionalmente pelos livros, intervenções públicas e um documentário sobre a sua «biografia política», Paul B. Preciado afirmou-se como um autor de enorme influência nas questões de género e da experiência das transformações corporais. O seu nome e os seus escritos tornaram-se poderosas bandeiras do universo transgénero e do corpo que lhe corresponde. Neste texto, defende que a atribuição binária do sexo nada tem de natural ou de estável.

Embora o corpo se nos apresente como puramente orgânico, como uma objectividade anatómica, as condições da sua representação e do seu reconhecimento têm sido objecto de pactos religiosos, políticos, científicos, técnicos e jurídicos que se foram modificando ao longo dos últimos séculos: a representação normativa do corpo esconde a sua historicidade e aparece como natureza. A nossa condição somatopolítica não é natural, mas tecnoviva: é um conglomerado histórico das várias tecnologias que nos constituíram. As noções modernas de humanidade e animalidade, de raças evoluídas e raças primitivas, de feminilidade e masculinidade, de homossexualidade e heterossexualidade, de corpos cis e corpos trans, de normalidade e patologia, e os protocolos que determinam a sua atribuição ou o seu diagnóstico evoluíram no Ocidente simultaneamente com as tecnologias de representação semiótica e visual. Uma história política do corpo é uma história das nossas próteses partilhadas. Uma tecnologia não é uma máquina externa, mas uma relação social que modifica as condições de produção, extracção e distribuição de energia, vida e prazer: é essa relação que produz, destrói, controla, reduz ou emancipa um corpo.

Cada sociedade inventa um conjunto de órgãos, concebe um corpo e põe-no a funcionar. Os nossos corpos são um palimpsesto vivo em que se sobrepõem e se entrecruzam diferentes processos de produção e de inscrição histórica. O corpo medieval era teológico-teatral-pictórico. O corpo moderno foi científico-foto-cinematográfico e o corpo em que nos estamos a converter é ciber-virtual-mercantil. Somos ao mesmo tempo todos esses corpos, construídos por diferentes sistemas de representação que entram, umas vezes, em aliança normativa e outras em fricção ou antagonismo crítico determinando em cada caso as nossas condições de vida e de morte. Sistemas de leitura, de medida, de vigilância, sistemas militares, sistemas de produção, de reprodução, de taylorização, sistemas logísticos, sistemas visuais e de representação… que fabricam o corpo.

Não só o corpo não é natural nem estável como, ao contrário do que habitualmente se afirma, não existe nada no corpo moderno tão pouco estável como o sexo. A diferença sexual não é uma verdade religiosa, nem metafísica, nem sequer anatómica imutável, mas um facto histórico e político constantemente submetido a críticas e a alterações. Os critérios de atribuição binária do sexo, ao invés do que pretendem os neonaturalistas autoritários, de Donald Trump a Viktor Orbán, passando por Vladimir Putin, também não são naturais nem estáveis. Pelo contrário, os órgãos e as células, os supostos enclaves biológicos da verdade do sexo, as suas representações e diferenças sempre variaram ao longo dos séculos.

José de Ribera, A mulher barbuda, 1631

José de Ribera, La mujer barbuda [A mulher barbuda], 1631 © Fotografia: Museo Nacional del Prado, Madrid

 

"Cada sociedade inventa um conjunto de órgãos, concebe um corpo e põe-no a funcionar. Os nossos corpos são um palimpsesto vivo em que se sobrepõem e se entrecruzam diferentes processos de produção e de inscrição histórica."

Entre os séculos XVI e XIX, durante a construção dos impérios coloniais e a sua posterior transformação em Estados-nação, dá-se a passagem da epistemologia teológica para uma epistemologia científico-técnica. Nas sociedades medievais, a atribuição sexual não é um «acto médico», nem tão-pouco há inscrição administrativa explícita. Mas as noções de «sexo» e de «sexualidade» não existem: o que existe é a «carne» e a «concupiscência» como noções teológico-políticas. Desconhecem-se os processos celulares da reprodução sexual: afirma-se que o pai e senhor cria uma vida que depois se desenvolve no útero da mãe. Há, pois, um só corpo soberano: o masculino. Não existe a «certidão de nascimento», mas o «certificado de baptismo», em que se diz se o baptizado é filho legítimo ou ilegítimo. O nascimento é um acontecimento diferido que tem lugar realmente durante o baptismo, quando o corpo é reconhecido como cristão. Há documentos que justificam a herança patriarcal ou matriarcal apenas quando há bens a legar, certificados nas chamadas cédulas de vecindad1. Dentro deste regime binário, encontramos «filhas» e «filhos» apenas enquanto corpos que as famílias «intercambiam» com fins reprodutivos ou económicos, como potenciais pais e mães, mas não existe uma anatomia científica propriamente dita da diferença sexual. Como mostra o quadro Magdalena Ventura com o marido e o filho, pintado por Ribera em 1631, o importante é a capacidade de um corpo se reproduzir (daí que o pintor tenha insistido em tornar visível o seio com que Magdalena alimenta o bebé), sem que assuma uma importância dominante aquilo a que o discurso científico posterior chamará «caracteres sexuais secundários» (como a barba, por exemplo). Ribera inscreve no quadro, em latim, en magnum naturae miraculum (o grande milagre da natureza). Há monstros, quimeras e milagres. Mas não há uma taxonomia científica da anormalidade sexual. Há assentos paroquiais, escrituras de compra e venda, testamentos, inventários post-mortem, autos de processos-crime, censos eclesiásticos e militares, mas em nenhum deles o «sexo» constitui uma variável biológica anatómica definida cientificamente.

Progressivamente, entre os séculos XVI e XIX, ao mesmo tempo que o saber científico toma o lugar da fé, as hierarquias políticas entre homens e mulheres passam a inscrever-se no domínio da biologia. Dois processos aceleram a passagem de uma linguagem teológico-política para uma taxonomia científico-técnica da diferença sexual: a expansão colonial e o tráfico transatlântico de escravos. Por um lado, o confronto da sociedade europeia com cosmologias pré-colombianas e africanas em que há mais de dois sexos ou mais de dois papéis sociais levará os colonizadores cristãos a considerar as múltiplas polaridades móveis além da diferença entre homem e mulher, e também as práticas sexuais não reprodutivas ou sem penetração pénis-vagina como «heresias» ou «pecados» que seriam primeiro punidos pela Inquisição e, depois, tipificados como crimes sexuais e psicopatologias, formas patológicas de «hermafroditismo» ou «homossexualidade». Por outro lado, e antes de as noções científicas se terem consolidado, a diferença sexual enquanto variável administrativa impõe-se nas transacções de venda de escravos porque aí a possibilidade de reprodução é vista como uma força suplementar de produção de valor. Na linguagem da plantação, homem e mulher são variáveis mercantis. Deste modo, como foi assinalado por María Lugones, Elsa Dorlin o Oyèrónkẹ Oyěwùmí, entre muitas outras vozes, a noção moderna de «sexo» aparece de modo constitutivo ligada à noção colonial de «raça», assim como a todos os processos de genotecnia, de produção de uma «raça» nacional, que regularão até praticamente aos anos 60 do século XX as leis de discriminação racial e de proibição de «casamentos mistos»2. A biologia patriarco-colonial constitui um ramo da economia política.

"Na década de 50, o pedopsiquiatra John Money (e não as teóricas queer radicais, partidárias da «ideologia de género», como pretende a Igreja Católica e o governo de Trump) inventa a noção de género na tentativa de salvar a epistemologia da diferença sexual."

nadar

Nadar, Hermaphrodite, 1860 © Fotografia: Musée d’Orsay, Paris

 

O corpo não pára de mudar e de encher-se com cada vez mais órgãos. Até ao século XVI, antes da prática da dissecação, desconhecem-se os processos celulares ou genéticos da reprodução sexual, e a anatomia feminina é considerada um pénis internalizado que não pode produzir vida, mas apenas servir de receptáculo para que um «homúnculo», já contido no esperma do homem, possa desenvolver-se. A legalização da dissecação produz cada vez mais órgãos. Com a dissecação mudam as formas e os nomes dos órgãos genitais. Inventam-se outros órgãos, outros corpos. Em 1559, o cirurgião italiano Matteo Realdo Colombo descobre a existência, entre os lábios da vulva, de um «minúsculo pénis» sem função reprodutiva precisa, que denomina «clítoris». Porém, como a possibilidade da sua existência põe em causa a diferença entre os órgãos genitais masculinos exteriores e o útero como interioridade vazia e disponível, o clítoris só seria reconhecido praticamente em meados do século XX. A estrutura e o funcionamento das trompas de Falópio seriam descritas em 1561. Em 1677, Anton van Leeuwenhoek, um comerciante de têxteis holandês, apaixona-se pelas lentes ópticas e, nas horas vagas, descobre que, numa gota do seu próprio esperma, há centenas de «animálculos», células espermáticas que não se podem confundir com pequenos seres humanos. Mas nenhum destes «factos» seria suficiente para alterar o paradigma masculinista segundo o qual a anatomia feminina não tinha validade em si mesma. Seriam precisos dois séculos para que a anatomia feminina fosse reconhecida como variável sã e verdadeira. Porém, as mulheres brancas só muito mais tarde, entre os séculos xix e xx, alcançariam reconhecimento político. Em 1827, Karl von Baer descobre o óvulo; em 1842, Karl Wilhelm von Nágeli descreve o funcionamento dos cromossomas e o intercâmbio de material genético entre o espermatozóide e o óvulo. O processo de atribuição através do exame visual dos órgãos genitais complica-se, primeiro com a descoberta, em 1905, das chamadas hormonas sexuais e o seu impacto na forma exterior do corpo e nos ciclos reprodutivos; e depois com a modelização da dupla hélice de ADN por Crick e Watson em 1953, e o reconhecimento de mapas cromossómicos cada vez mais complexos. Na década de 50, o pedopsiquiatra John Money (e não as teóricas queer radicais, partidárias da «ideologia de género», como pretende a Igreja Católica e o governo de Trump) inventa a noção de «género» na tentativa de salvar a epistemologia da diferença sexual. Consciente da impossibilidade de atribuir o sexo feminino ou masculino a todos os bebés nascidos (entre 1,7% e 2,5 % dos bebés nascidos não pode ser objecto de uma atribuição binária), John Money sugere que o género, ao contrário do sexo, é construído socialmente e, portanto, pode servir de variável de ajuste para redireccionar o processo de sexualização de um bebé considerado «intersexual». Com a ajuda de operações e hormonas, Money propõe reconstruir o corpo dos bebés intersexuais dentro do binarismo sexual. Pouco depois, Harry Benjamin e David Oliver Cauldwell estabeleceriam a transsexualidade enquanto patologia de género e elaborariam um conjunto de protocolos hormonais e cirúrgicos de reatribuição, destinados sempre a estabilizar e a normalizar a diferença sexual num quadro heteronormativo. Nada disto é natureza. Nada disto aconteceu sem lutas semiótico-políticas, sem que os corpos que foram objecto de atribuição e de objectivação não tenham resistido. E fizeram-no, paradoxo extremo da somatopolítica, com o mesmo corpo com que foram subjectivados e objectivados.

[...]

1. Primeiros documentos de identificação pessoal a vigorarem em Espanha a partir de meados do século XIX. (N. do T.)
2. María Lugones, «Colonialidad y género», Tabula Rasa, n.º 9, Bogotá, Julho–Dezembro de 2008; Oyèrónkẹ Oyěwùmí, The Invention of Women. Making An African Sense of Western Discourses, Minneapolis: Minnesota University Press, 1997; Elsa Dorlin, La matrice de la race. Généalogie sexuelle et coloniale de la nation française, Paris: La Découverte, 2006.