Embora o corpo se nos apresente como puramente orgânico, como uma objectividade anatómica, as condições da sua representação e do seu reconhecimento têm sido objecto de pactos religiosos, políticos, científicos, técnicos e jurídicos que se foram modificando ao longo dos últimos séculos: a representação normativa do corpo esconde a sua historicidade e aparece como natureza. A nossa condição somatopolítica não é natural, mas tecnoviva: é um conglomerado histórico das várias tecnologias que nos constituíram. As noções modernas de humanidade e animalidade, de raças evoluídas e raças primitivas, de feminilidade e masculinidade, de homossexualidade e heterossexualidade, de corpos cis e corpos trans, de normalidade e patologia, e os protocolos que determinam a sua atribuição ou o seu diagnóstico evoluíram no Ocidente simultaneamente com as tecnologias de representação semiótica e visual. Uma história política do corpo é uma história das nossas próteses partilhadas. Uma tecnologia não é uma máquina externa, mas uma relação social que modifica as condições de produção, extracção e distribuição de energia, vida e prazer: é essa relação que produz, destrói, controla, reduz ou emancipa um corpo.
Cada sociedade inventa um conjunto de órgãos, concebe um corpo e põe-no a funcionar. Os nossos corpos são um palimpsesto vivo em que se sobrepõem e se entrecruzam diferentes processos de produção e de inscrição histórica. O corpo medieval era teológico-teatral-pictórico. O corpo moderno foi científico-foto-cinematográfico e o corpo em que nos estamos a converter é ciber-virtual-mercantil. Somos ao mesmo tempo todos esses corpos, construídos por diferentes sistemas de representação que entram, umas vezes, em aliança normativa e outras em fricção ou antagonismo crítico determinando em cada caso as nossas condições de vida e de morte. Sistemas de leitura, de medida, de vigilância, sistemas militares, sistemas de produção, de reprodução, de taylorização, sistemas logísticos, sistemas visuais e de representação… que fabricam o corpo.
Não só o corpo não é natural nem estável como, ao contrário do que habitualmente se afirma, não existe nada no corpo moderno tão pouco estável como o sexo. A diferença sexual não é uma verdade religiosa, nem metafísica, nem sequer anatómica imutável, mas um facto histórico e político constantemente submetido a críticas e a alterações. Os critérios de atribuição binária do sexo, ao invés do que pretendem os neonaturalistas autoritários, de Donald Trump a Viktor Orbán, passando por Vladimir Putin, também não são naturais nem estáveis. Pelo contrário, os órgãos e as células, os supostos enclaves biológicos da verdade do sexo, as suas representações e diferenças sempre variaram ao longo dos séculos.
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