Brasília é construída na linha do horizonte.
Brasília é artificial.
Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado.1
Da «escultura social» Kinderstern aos vitrais da Catedral de Reims, na obra de Imi Knoebel estão presentes as grandes perguntas que a arte tem feito a si própria e ao mundo no século XX e no século XXI. Reconhecendo na geometria desafiadora de Malevich uma inspiração primordial, estudou com Kilian Breier e Joseph Beuys, fazendo da exploração criadora do material, da forma e da cor uma constante demonstração da sua prodigiosa criatividade, e dando com isso à arte não figurativa um novo esplendor. Este artista alemão, representado nas mais prestigiadas colecções de arte do mundo, preparou para a Electra um portfólio que é apresentado num ensaio de Gabriel Barbi.
Enquanto editor de imagem da Electra desde o número quatro, há seis anos que selecciono as imagens desta revista. Senti agora, pela primeira vez, a necessidade de expor o processo de escolha de algumas das imagens apresentadas nestas páginas. Esta reflexão responde ao seguimento do generoso convite que me foi feito por Carmen e Imi Knoebel, que me receberam na sua casa, atelier e refúgio criativo na Reichsstrasse, com vista sobre o muito organizado jardim da Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, em Düsseldorf. O ímpeto de publicar nesta mesma revista um artigo sobre o trabalho de Imi Knoebel surgiu com a mais recente e luminosa série do artista com o título Alphabet, que está actualmente em produção e ainda não foi exibida.
A primeira vez que li sobre esta série foi num texto escrito por Barbara Piwowarska para uma exposição de Imi na galeria Jahn und Jahn Lisboa, em 2024. Esta apresentava várias formas irregulares cortadas à mão em chapa de alumínio, da série Etcetera, penduradas a poucos centímetros da parede, com as superfícies cobertas de pinceladas que não se limitavam a gestos pictóricos. Poderá uma forma em particular sugerir a letra E? Ou talvez seja um F? Ou poderá ser alguma escrita antiga, como a cuneiforme? Ou cirílico ou kanji? O que fica claro é que não são verdadeiramente representativas destes sistemas de escrita, fazendo antes parte do inventário visual de Imi, que resiste a limitações e está em constante reorganização; uma prática continuamente em crescimento, que abrange quase sessenta anos.
Este conceito de preparação da base ou de imprimitura (Grundierung em alemão) está presente em toda a obra de Knoebel. Faz lembrar aquilo a que Hanne Darboven chamou Grosse Arbeit (grande obra, grande trabalho, trabalho de base, trabalho de fundo). As suas fundações foram assentes em 1966, no ano em que Knoebel começou a estudar na Kunstakademie Düsseldorf com Joseph Beuys por tutor. Foi aí que surgiram peças como Linienbilder (Pinturas-linhas) e Raum 19 (Sala 19), e se estabeleceram muitas das suas referências estruturais, ditando o tom e preparando a base que permitiu o desenvolvimento de tudo o que Knoebel criou desde então. Em alemão, Haltung significa uma atitude, uma postura, uma disposição mental. Estes trabalhos mais antigos representam uma operação de multiplicação, um expoente. Kernstücke. Peças centrais (1966–2014); Projection X (1970–71); os pilares em forma de cruz de Mies van der Rohe. A reminiscência de Malevich. Neue Nationalgalerie. Projectar sombras. Primeiro plano e fundo. O vazio enquanto totalidade. Hardcore. Cerne. Medula. A parte interior de um animal ou planta. Where the energy comes from. Fundação. Love Child.
almost yellow, jazzed up red, out of the blue
Os títulos dos trabalhos de Imi Knoebel são curiosamente reveladores — apesar de uma impressão comum de que pouco se pode «ler» a partir deles. Quando descrevi uma pintura que vi na exposição antológica de Knoebel patente permanentemente no Kunstraum am Limes, perto de Koblenz (ecoando a magnífica exposição no Kestnergesellschaft em 2002), Carmen respondeu de imediato: «The Milano paintings!» Apesar de o arquivo registar uma pintura de grande dimensão intitulada MILANO, a série em si apresenta títulos subtilmente alterados: AAAMMO, LILILA, MMMMMM, OMMNOM, NNNNIL, MOLANI, IIAAOO, ALIAAA, LILOLA, IOOOOM, MOLAIN, INNINN, LILINA, AAMIII. Não são anagramas, já que não pertencem ao campo da linguagem, funcionando antes como repetições codificadas e variações em torno de um tema visual. Estes trabalhos surgiram como modelos esquemáticos, feitos a partir de recortes de papel pintados à mão, que foram depois transfigurados em peças de alumínio de maior dimensão, também elas pintadas à mão por Imi. Umas vezes aplicando a tinta directamente sobre réguas metálicas, outras sobre uma superfície preparada super plana. Os tubos são montados através de um intrincado sistema de furos e soldaduras ocultas, que são completamente invisíveis para o observador. As cores são ousadas, vivas e muitas, por vezes cobertas por uma segunda folha de alumínio ligeiramente menor que a grelha de baixo. Isto resulta num impressionante jogo de opacidade e transparência — a essência da pintura, apesar da sua manifestação muito tridimensional. Carmen referiu-se aos títulos como uma sugestão de sequenciação de ADN, a génese da criação. Será isto essencialismo? Spinoza. Descartes? Cogito ergo coloribus. Cogito ergo figura. De coloribus. Ars poetica. Ut pictura poesis. Essência artificial. Artifício essencial. Sistemas de crenças. Códigos e sinais. Barroco. Aparição. Repetição e paralelismo. Fantôme. Luz. Amor. Alte Liebe. Neue Liebe. Silêncio.
A forma como Knoebel usa a cor resiste a uma lógica sistémica. Ao contrário da tradição Bauhaus de paletas controladas e harmonia entre as cores, as suas justaposições são idiossincráticas. A morte do artista Blinky Palermo, amigo próximo de Imi, em 1977, teve um papel crucial. Radicalismo cromático. Farbenlehre. Também a serialidade e a modularidade estabelecem a arte de Knoebel, estabelecendo ligações históricas ao minimalismo, mas também ao pensamento por sistemas da abstracção do pós-guerra (Darboven, LeWitt ou Judd): os seus trabalhos surgem frequentemente como sistemas modulares, governados por lógicas internas de repetição e variação. Contudo, ao contrário da frieza industrial do minimalismo, as grelhas de Knoebel vibram pulsantes e são feitas por ele: bordas cortadas à mão, desvios ligeiros, pinceladas — vestígios de um corpo dentro de um sistema. «Imi» é o seu pseudónimo e vem de Ich Mit Ihm, que significa «eu com ele». Selbst im Spiegel.
O seu atelier poderia ser comparado ao conceito do corpo-máquina, mecânico mas vital, racional mas instintivo, um organismo intrincado de intelecto e trabalho. Trata-se de um edifício de vários andares, cada um dedicado a uma etapa distinta de um processo meticuloso. As primeiras três salas contêm amostras da paleta de Imi e inúmeras gavetas cheias de recortes feitos à mão, que são depois colocados em matrizes de escala para serem transpostos para outras dimensões e enviados para as oficinas de metal ou de madeira nos respectivos andares. Presos às paredes há recortes de jornais que formam uma eclética constelação de imagens. Stonehenge. Arquipélagos. Bactérias. Massas de gelo flutuantes. Uma batata. Ayers Rock. Uma reprodução de uma pintura de Philip Guston na qual o artista está deitado na cama, acordado. Bandeiras vermelhas a bater ao vento. O Capri-Battery de Beuys. Outra sala está coberta de fotografias de Carmen Knoebel, das filhas e das netas. Atrás há um espaço reservado para pintar (todas as fotografias publicadas nas páginas que se seguem são desta sala). Por baixo de tudo isto está a cave: o cérebro do organismo, a fundação onde as matérias primas são guardadas, onde a matéria entre num estado sem forma e, seguindo a sua jornada alquímica ao longo dos pisos de cima, é meticulosamente embalada e enviada para o mundo como uma estrela cadente.
dos híbridos (construtivismo) ao etcetera (a imagem total)
Carmen e Imi vivem na mesma casa desde 1984. Na primeira sala há uma forma irregular em alumínio, pintada com muitos tons de vermelho, que faz parte da série já mencionada Etcetera. Um candeeiro Akari, de Isamu Noguchi, com a forma de um chifre brilha entre duas janelas. Três peças estão pregadas directamente à parede do lado oposto: duas formas pintadas de azul claro-turquesa e de azul muito escuro verde-floresta, ambas pertencentes à série Love Child, e 1 dos 1000 Hasen (uma peça em cobre recortado a jacto de água que se parece com um coelho). Uma mesa colorida e vibrantemente recortada, parte da exposição que Knoebel realizou em 2004 na galeria Bärbel Grässlin, conduz-nos à segunda sala, onde outra mesa, produzida quarenta e três anos antes numa edição de vinte e cinco para o Stedelijk Van Abbemuseum Eindhoven, cria um local de pausa e diálogo, acompanhadas pelas cadeiras Series 7, de Arne Jacobsen. Há também desenhos feitos pelas netas do casal colados à parede em frente a uma grande pintura cor de pele da série Archetyp (2021). Os vasos ondulantes de vidro Iittala de Alvar Aalto apresentam arranjos de flores que incluem anémonas siberianas, narcisos, rosas, ranúnculos e tulipas em tons de amarelo, malva, vermelho-cádmio, violeta claro, rosa e brancos suaves, a contrastar com muitos tons de verde. Na mesma sala, três cadeirões Kubus de Josef Hoffmann e um candeeiro de mesa Oz verde e rosa de Daniela Puppa pousado no parapeito de uma grande janela que enquadra um jardim que ganha vida com a Primavera. Garten für Carmen, 2008/09. Consigo ver uma camélia, cujas flores parecem ovos estrelados, orgulhosamente ao lado de uma Magnolia soulangeana em flor.
Esta magnólia, um híbrido de Magnolia denudata (nativa do Leste da China) e Magnolia liliiflora (de Sichuan e Yunnan), foi cultivada pela primeira vez em 1820, por Étienne Soulange-Bodin, general napoleónico reformado. Gosto de olhar para o trabalho de Imi do mesmo modo: como um conjunto refinado de componentes, passível de ser reproduzido, representado, normalizado, revelado, escondido e arquivado. 250 000 desenhos. Estrelas. Constelações. O Resultado de adições, subtracções, equações. Polinização cruzada. Flores. Da flor ao fruto. Híbridos de Knoebel. Prendre parti. Por vezes opaco, por vezes transparente, nunca em simultâneo, mas ritmicamente. Dinâmico, mas sem direcção. Talvez um vórtex virado para dentro. Abre-se e fecha-se como o diafragma de uma câmara fotográfica. Pode significar algo ou nada. Algo velho e algo novo. O múltiplo e o singular. Mas nunca uma coisa qualquer. Nada de novo… Poderá esta ser a ferida no calcanhar de Aquiles — não uma ferida fatal, mas uma libertação das limitações da representação? Hecceidade. Quididade. A soma: Unterm Strich: o resultado (1968-2019). Ou talvez, créditos e débitos, dever e haver. Soll und Haben. Um novo novo. Mas não o será tudo? Não é transgressão, como as vanguardas. Tampouco se contradiz. O discurso é silenciado — ou talvez tenha sido completamente apagado. Não é uma posição, nem ilumina; será um negativo através do qual a luz pode passar? Pode parecer uma constelação, mas não estarão algumas das estrelas que cintilam no céu à noite há muito mortas?
Neste transe hermético (ou dança atómica), recordo o poema de Wisława Szymborska, «Conversa com a Pedra». Tal como a visão de Brasília de Clarice Lispector — branca, oca, impenetrável —, não há por onde entrar, nem de onde sair. Os sentidos sejam a crítica da razão. Alegria pura.
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