Arca de Noé
Encontro de olhares: Jeff Wall e Pedro Costa em conversa

Esta conversa entre dois artistas, o fotógrafo canadiano Jeff Wall e o realizador português Pedro Costa, teve lugar, em Lisboa, na ocasião da inauguração da exposição Jeff Wall – Time Stands still. Fotografias 1980–2023, no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (que pode ser visitada até ao final de Agosto). O encontro destes dois olhares e destas duas vozes evoca o grande apreço que, desde que viu Ossos, o fotógrafo manifestou pelos filmes de Pedro Costa, testemunhando uma admiração recíproca e uma comunhão de interesses intelectuais. Um e outro têm desenvolvido uma longa e densa reflexão não só sobre o próprio trabalho, mas também sobre as disciplinas artísticas que praticam. No caso de Jeff Wall, essa reflexão ganhou a forma de ensaios sobre a arte, onde é bem visível a sua relação com o cinema, mas também com a pintura e a literatura. Pedro Costa, por sua vez, também transpõe, no seu trabalho e nas suas reflexões, as fronteiras da arte cinematográfica, fazendo incursões nos territórios da fotografia e da pintura. Estava assim criado um espaço aberto de diálogo, de inquirição recíproca, de aferição de afinidades e de diferenças. É essa conversa, realizada em exclusivo para a Electra, que aqui publicamos.

ANTÓNIO GUERREIRO  O Pedro é cineasta, o Jeff é fotógrafo, mas julgo que há uma possibilidade de diálogo entre os dois na medida em que o Pedro dialoga com a fotografia nos seus filmes e o Jeff dialoga com o cinema. O Jeff até usa um conceito que aponta nesse sentido, o conceito de «cinematográfico». O que queres dizer com este conceito?

JEFF WALL  O Pedro mencionava há pouco que não considera o cinema uma arte visual. E eu concordo plenamente, ainda que, paradoxalmente, haja nele tanto para ver. Pedro, do teu ponto de vista o cinema talvez nem sequer seja, estritamente falando, uma arte fotográfica, ainda que a fotografia esteja muito presente. A cinematografia, para mim, designa simplesmente as técnicas fotográficas desenvolvidas pelos cineastas para fazerem filmes. Isso inclui o virtuosismo técnico, um uso amplo de artifícios e uma técnica de câmara altamente sofisticada. Quando comecei a levar os filmes a sério, passei a reconhecer que podemos avaliá-los e apreciá-los da mesma forma que se aprecia qualquer obra de arte séria — uma pintura, um poema, uma escultura. Estou a pensar em filmes de Bergman, Fellini, Truffaut, e por aí fora. E a beleza da fotografia destes filmes fascinava-me. Então, ocorreu-me que quem fazia aquelas imagens eram, na verdade, fotógrafos, mas com acesso a uma forma de ser fotógrafo diferente do entendimento ortodoxo do que era a fotografia. Estavam livres dos critérios estéticos convencionais que regeram a fotografia durante cerca de um século. Quando comecei a levar a minha própria fotografia a sério, percebi que podia extrair os métodos desse cinema e tratá-los como técnicas fotográficas legítimas. O que faço nada tem que ver, no concreto, com o cinema propriamente dito. Nem sequer me interessa assim tanto o cinema — interessa-me o aspecto do cinema.

AG  E tu, Pedro, o que tens a dizer sobre isto?

PEDRO COSTA  Eu ainda gosto de fotografia. Talvez até seja, de certo modo, fotógrafo. Mas já gostei muito mais de fotografia. Acho que também já gostei muito mais de cinema. Isto diz bastante sobre o meu estado actual, a minha disposição… Quer dizer, talvez diga muito acerca da minha desilusão, senão mesmo exasperação, em relação a tudo o que é imagem e a tudo o que diz respeito à reprodução da realidade. Nunca perdi o meu apego à ideia de que precisamos desesperadamente de imagens do nosso mundo. Por isso, para mim, a fotografia e o cinema sempre foram artes muito próximas, íntimas e realistas.

AG  Preferes a pintura? Tens uma relação mais forte com a pintura?

PC  Não é isso. Quando era mais novo, adorava fotografia. Acompanhava o trabalho de alguns fotógrafos. Gostava de livros de fotografia. Mas, como disse, o mesmo se passou com o cinema. Vejo sobretudo filmes «antigos». Os clássicos que me formaram, aqueles que vi e amei quando era mais novo, são ainda os que me comovem agora, e sempre. E, tal como tu, raramente vou ao cinema ver um filme novo, não sinto o mínimo entusiasmo, ou sequer curiosidade. Há também o facto, puro e simples, de haver tanta coisa do passado a que ainda não cheguei…

JW  Consideras-te essencialmente um realista?

PC  A pergunta não me incomoda, mas acho que não te sei responder. Inverteria a pergunta e dir-te-ia o mesmo, e tu ficarias igualmente embaraçado. Mas não, não sou.

JW  Não me embaraça de todo. Acho que sou um realista, pelo menos no eixo central do meu trabalho.

PC  Eu tento aproximar-me. Sempre tentei aproximar-me da realidade.

JW  Achas que é a câmara que determina o nosso realismo? A câmara em si, a sua presença, porque sem ela não poderíamos fazer o que fazemos. Ou seja, a captação automática torna-se um quadro de referência fundamental. Tenho curiosidade quanto à tua afeição pela câmara propriamente dita. Eu fui ganhando uma admiração profunda pela minha câmara. Percebi que tinha de tentar imitá-la, de ser como ela. Sentes o mesmo?

PC  Devíamos desprezar aquela máquina fria e estúpida. Nestes tempos digitais, então, a coisa está a tornar-se patética: de seis em seis meses há uma nova maravilha, lançam uma nova câmara e um novo conjunto de objectivas de altíssima definição, e dizem «aqui está a derradeira 8K» ou «esta nova câmara portátil filma em noites escuras como breu, sem luz nenhuma». É um cenário do género Primavera/Verão, a nova colecção Outono/Inverno. É tenebroso. E gera filmes que condizem com esta histeria: vazios, amorfos, superficiais… Seja como for, como tu próprio dizias, é por causa da câmara que um filme ou uma fotografia da nossa realidade tem a possibilidade de ganhar vida. Nem sempre acontece, claro. Não fazemos filmes na vida quotidiana… Os nossos olhos enganam, são relativamente distraídos. A câmara chama pela realidade. E esse chamamento é necessário. Eu, pelo menos, preciso disso. É por teres uma câmara que consegues fazer este trabalho. Se a câmara não existisse, não me parece que eu tivesse tido a ideia ou a vontade de ser pintor ou músico. Tenho amigos pintores, fotógrafos, escultores, músicos — e são todos artesãos magníficos —, mas não me livro da ideia de que o cinema ainda é o melhor instrumento para nos aproximarmos da realidade. Não quero estar com grandes filosofias: sou a favor de começar pelo cliché mais rasteiro para construir a partir daí… Um homem ou uma mulher com uma câmara deve ser sensível, deixar-se afectar, pacientemente, pela realidade mais simples ao seu redor… Isto, se quiser que o seu filme ou fotografia pense e nos faça pensar. Sendo assim, com alguma sorte à mistura, o cinema pode até chegar ao terreno da metafísica.

"Ainda gosto de fotografia. Talvez até seja, de certo modo, fotógrafo. Mas já gostei muito mais de fotografia. Acho que também já gostei muito mais de cinema." (Pedro Costa)

jeff wall

Jeff Wall, Volunteer [Voluntário], 1996 © Cortesia do artista

 

pedro costa

Pedro Costa, Vitalina Varela, 2019 Filme, 124 min, Portugal

 

JW  E ao fazermos qualquer coisa com uma câmara, somos também testemunhas da aparição desse dispositivo na História. Nós, ou seja, nós, fotógrafos, ou nós, utilizadores de câmaras, somos as principais testemunhas do fenómeno da câmara. Porque, além da história que tu estás a contar ou do momento que eu estou a representar, estamos ambos a testemunhar e a encenar o aparecimento da fotografia. Estamos a dar corpo à presença da fotografia em si. Acho que isso anima o que tentamos fazer, está na origem da nossa dependência do real.

PC  Quando era mais novo e estava mais próximo da fotografia, tinha alguns amigos fotógrafos, e já então a fotografia me parecia um pouco mais simples do que o cinema. Não o digo num sentido depreciativo. Em certos aspectos, sempre a considerei a mais difícil das artes. Ou dos ofícios. Mas parecia um modo de vida mais desprendido, menos dependente dos transtornos e complicações do dinheiro, da sociedade, dessas coisas todas. E trabalha-se depressa, quase só se depende de si próprio. Por outro lado, o «documentário», à falta de melhor termo, parecia uma prerrogativa da fotografia. Todos os fotógrafos que eu amava e admirava eram realistas puros: Evans, Frank, Arbus, Riis, Atget… Tudo o que era vanguardista ou experimental, tanto na fotografia como no cinema, me aborrecia de morte. Mas para ser claro: não estou a pregar nem a fingir que a fotografia ou o cinema devam cumprir algum tipo de função social. Dito isto, não consigo imaginar melhores documentários sobre uma certa sociedade, uma certa classe social e a sua economia, o seu sentimentalismo, do que as sumptuosas produções de estúdio de Hollywood dos anos 30, 40 e 50. Não, a realidade não é assim tão óbvia nem simples de retratar. Às vezes são precisos filtros e cortinas, metáforas e mesmo um pouco de imaginação para que a realidade se revele tal como ela é. Não há uma forma única de a abordar. Pode ser uma quimera, um sonho, uma fantasia. Mas também é verdade que, por trás de toda a ilusão e manipulação, o cinema e a fotografia casam quase naturalmente com a realidade. É o mundo tangível à frente da objectiva. É click, click, on, off. Com o tempo, comecei a sentir que o cinema me acolhia. E que a câmara não me rejeitava. Acho que todos os cineastas e fotógrafos sentem algo assim. Este é o meu ofício. E, sim, o coice e o empurrão que o documentário pode dar à ficção continuam a ser muito importantes para o nosso trabalho.

AG  «Documentário» é também uma palavra muito importante nos teus textos, Jeff. A que é que chamas «quase documentário»?

JW  Aquilo a que chamo «quase documentário» é semelhante ao que, no cinema, se pode denominar «docuficção». A essência da fotografia é exactamente aquilo que a tradição dita «documental» sempre foi — uma dependência da aparência imediata do mundo. Considero ser essa a identidade central de qualquer noção estética da fotografia. Mas eu queria contemplar os efeitos do documentário fazendo outra coisa. Isso implicava acrescentar outras acções, outras considerações, à simples captação da aparência. Vejo isso a acontecer nos teus filmes, Pedro: dás ênfase ao real, mas há uma clara insatisfação com a mera captação desse concreto e precisas de fazer emergir aquilo que sentes sobre esse concreto e que mais ninguém pode revelar, que não é possível comunicar de outra forma. Sinto que o que faço é uma subjectivação, sem prejuízo do meu apego ao elemento objectivo. O próprio equipamento obriga-nos a proceder assim, como acabei de dizer. Portanto, há uma limitação que tentamos ultrapassar acrescentando-lhe algo. O primeiro filme teu que vi, Ossos, pareceu-me intensamente poético, atravessado por uma inquietação perante uma realidade à qual estavas obviamente muito apegado.

PC  A questão é que há mesmo muito trabalho a fazer… É como aqueles tipos exaustos e destroçados dos romances de Conrad… Havia tanto por fazer! Estamos agora a preparar um filme… E quando digo «nós», refiro-me à nossa pequena equipa de quatro ou cinco pessoas… E volta a acontecer o mesmo… Não é que tentemos complicar as coisas, mas há um mundo rico à nossa frente e imensas coisas por fazer… Não sei se um pintor poderá dizer o mesmo. Suponho que ele parte, desde logo, de uma certa abstracção. Quando se é cineasta, ou fotógrafo, acho que as coisas pedem concentração, uma espécie de redução. E esse é o primeiro e o último passo do nosso trabalho. Eu gosto de observar, e estou certo de que tu também… Jacques Tati costumava dizer: «O momento em que sou mais feliz é quando me sento num banco, o dia inteiro, no aeroporto de Orly, a ver as pessoas a ir e vir.» Gosto de observar a vida, o movimento das coisas. Mas depois vem a reconstrução, uma arrumação, e a crítica indispensável a tudo isso. É uma tarefa difícil. Discernir o que está certo ou errado, afinar o equilíbrio entre os dois lados da câmara… Como dizia Buñuel, um filme deve sempre fazer-nos sentir que algo não está bem. Ou, para evocar outras palavras sábias, qualquer filme responsável deve tornar claro que já não se pode tomar banho em nenhum rio…

JW  Quando trabalhas com pessoas, o que é que te instiga a intervir?

PC  Bem, isso foi mudando com o tempo, e essa mudança trouxe-me alguma esperança. Sabes, o cinema é uma coisa lúgubre. É, na sua essência, profundamente desesperado. E assustador. Temos vindo a insistir na ideia de que a câmara te faz ver o que não verias sem ela, mas és tu o operador, és o cérebro, o coração e os nervos… Estamos a falar, na verdade, de um acto violento. Obsessivo. Assim, ao longo dos anos, aprendi — ou ensinei-me — a trabalhar com as pessoas, e é esse trabalho com as pessoas que pode restituir alguma delicadeza a esta luta. Não há aqui diferença entre actores, não-actores e personagens. É conferenciar, conjurar e tentar encontrar um caminho comum para percorrer com eles, descobrir direcções interessantes. E esse trabalho com as pessoas foi crescendo em mim, cativou-me e conquistou-me… No início, estava doentiamente fascinado por outras coisas. Por exemplo, pela montagem, para começar. É sabido que é uma parte substancial da realização de um filme, porventura a mais obscura ou misteriosa. Até Godard teve dificuldade em defini-la. E, como todos nós, eu depositava muita confiança na montagem. Desejava ardentemente a beleza de um choque visual ou de uma associação engenhosa. Agora interessa-me muito mais perceber até onde conseguimos ir com as pessoas, os actores. Tudo depende do seu trabalho — do seu desempenho, chamemos-lhe assim, para simplificar. E este trabalho é uma espécie de investigação, de descoberta, não só do próprio filme, mas também das pessoas que estão à frente da câmara, bem como das que estão atrás dela. Portanto, a maneira como decides organizar a tua produção é bem mais determinante do que o grau de sofisticação do teu equipamento de luz ou do catering. Vai afectar a forma. As pequenas câmaras de vídeo e as digitais ajudaram muito. Lembrei-me do que Chaplin fazia em película. Ele podia fazê-lo porque era o cineasta mais famoso e mais rico do planeta. Chamava-lhe «ensaio em película». Hoje em dia é relativamente barato fazê-lo. O que quer dizer que podemos filmar os ensaios ou as tentativas…

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