Editorial
Corpo a corpo
José Manuel dos Santos e António Soares

Para falar do corpo, deveríamos dar às palavras a elasticidade célere dos músculos, a longa densidade dos ossos, a electricidade inquieta dos nervos, a pulsação cadenciada das artérias, a obscura complexidade dos cérebros, a química incansável dos rins, o fluxo fino dos fluidos, o brilho brusco das peles, a árdua e ardente insubmissão dos sexos.

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Henri Matisse, Nu Bleu I [Nu azul I], 1952 © Fotografia: Fondation Beyeler, Basileia

 

Ou, em insolente simetria, para falar do corpo, haveríamos de dar às palavras os silêncios mais invulgares e subtis, pondo-as em fuga dos significados habituais, restituindo-lhes, ao mesmo tempo, a sua carga animal e a sua escalada metafísica, ambas próximas de uma afasia que só diz que não consegue dizer. Se assim fosse, falávamos do corpo, fazendo das palavras um espelho calado, onde a sua imagem se vê e se mostra, numa aparição que nos oculta um segredo e nos submete a um sigilo.

Ou, então, também poderíamos dar às palavras um lugar no corpo para aí se gravarem como uma tatuagem incandescente — ou nele se inscreverem como uma ferida na interminável vertigem da sua demorada cicatrização.

É que, do corpo, desconhecemos mesmo o que conhecemos e sabemos até o que ignoramos. É entre esta ignorância lúcida e este conhecimento incerto que somos o corpo que temos e que temos o corpo que somos. De um para o outro, sentimos o que pensamos e pensamos o que sentimos num círculo que faz do vício virtude.

Diz Paul Valéry, em «Note et digression»: «Nada ilustra melhor o carácter superficial do pensamento que as observações e reflexões que ele pode fazer sobre o corpo. Ele [o pensamento] pertence-lhe, move-o, ignora-o, refere-se a ele, esquece-o, é surpreendido por ele…» E diz também: «O que há de mais profundo no homem é a pele.» E Roland Barthes afirma, em Fragmentos de um Discurso Amoroso: «O que a minha linguagem esconde o meu corpo o diz. O meu corpo é uma criança teimosa, a linguagem é um adulto muito civilizado.»

Sozinho ou caminhando ao encontro de outros corpos, o corpo reconhece-se e desconhece-se. Afirma-se que o corpo é mais nosso no prazer e na dor, no amor e na doença, no adormecer e no acordar, na travagem e na aceleração, na escassez e no excesso, na vitória e na derrota. E que sentimos o corpo mais nosso quando o sentimos mais dos outros.

Ao longo dos séculos, o corpo — e a maneira diversa e, por vezes, oposta, como cada tempo, cada civilização e cada cultura o viveu, usou, sentiu, pensou, olhou, amou, odiou, escreveu, apresentou, representou, escondeu, mostrou, comprou, vendeu, cuidou, idolatrou, maltratou, sacralizou, dessacralizou — tem sido um indício, um símbolo e um retrato do tempo, da civilização e da cultura.

No corpo — nos corpos — encontram-se a vida e a morte, a saúde e a doença, a natureza e a cultura, a linguagem e o silêncio, o universal e o particular, a identidade e a alteridade, a matéria e o espírito, o físico e o mental, o objectivo e o subjectivo, o interior e o exterior, a comédia e a tragédia.

Encontram-se a solidão e a comunicação, o secreto e o revelado, o íntimo e o partilhado, a nudez e a veste, o necessário e o contingente, o indivíduo e a sociedade, a nação e a classe, a raça e a família, o género e o sexo, a idade e a imagem, a economia e a tecnologia, o trabalho e o lazer, o belo e o feio, o crime e o castigo.

Encontram-se o poder e a resistência, a dominação e a libertação, a lei e a transgressão, a regra e a excepção, o fetiche e o interdito, a ortodoxia e a heterodoxia, o conformismo e a heresia, a estética e a ética, a religião e a moral, o sagrado e o profano, a realidade e a ficção, a verdade e a mentira, a guerra e a paz, o pastor e o rebanho, Deus e o diabo.

Das manifestações epilépticas de cólera aos ancestrais rituais da alimentação; dos acenos amistosos de compreensão e concordância aos gestos abruptos de rejeição e recusa; dos esgares cambaleantes do bêbado ao salto infalível da bailarina; da saudação bárbara da mão esticada ao sinal resistente do punho erguido; do desfile exibido na passerelle à combustão oculta no crematório; dos dedos que tocam o teclado do computador às mãos postas das preces e súplicas religiosas; da agitação sonâmbula da insónia à profusão barroca do sonho; dos movimentos, ora lentos ora rápidos, do amor aos espasmos agónicos da doença; do bailado elegante da esgrima ao soco brutal do boxe; dos grandes êxtases místicos às visionárias vertigens alucinogénias; da cambalhota do saltimbanco ao salto do pára-quedista; da força exacta do lenhador ao gesto musical do maestro; da levitação aérea do faquir à queda por terra do xamã — o corpo é um lugar de experiências-limite e de sentidos, ora acesos ora apagados, de coerências orgânicas e de contradições somáticas, de paradoxos e de paroxismos, de harmonias e de dissonâncias, de clivagens e de fragmentações, de entregas e de acolhimentos, de expansões e de recolhimentos, de transições e de transacções, de alinhamentos e de desvios.

Do Cristo Crucificado, de Velázquez, a A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix; de A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, aos Estudos para o Corpo Humano, de Bacon; do Tratado das Proporções do Corpo Humano, de Albrecht Dürer, a A Virgem Adorando a Hóstia («Isto é o meu corpo»), de Ingres; da Olympia e do Déjeuner sur l’herbe, de Manet, à Origem do Mundo, de Courbet; dos Prisioneiros, de Michelangelo, a O Pensador, de Rodin; das Majas, de Goya, à Pintura Habitada, de Helena Almeida; da Primavera, de Botticelli, à Possessão, de Paula Rego; de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, ao Último Retrato, de Lucian Freud; de Rhythm 0, de Marina Abramović, a Meat Joy, de Carolee Schneemann; de Rudolf Nureyev, em La Bayadère, a Marlene Dietrich, em O Anjo Azul; de Maria Callas, na «Traviata», a Amália Rodrigues, no «Barco Negro».

A relação entre a música e o corpo manifesta-se de maneiras múltiplas e complexas. Música e corpo são inseparáveis; a música mobiliza o corpo, e o corpo encarna a música. Do hip-hop ao punk, do samba ao techno, o corpo torna-se ponto de intersecção entre som e acção, entre ritmo e gesto. Como performance visual e de género (Grace Jones), como espaço de transgressão e desejo (Madonna), como desvio e palco de múltiplas identidades (David Bowie), como tradução emocional dos sons e dos silêncios (Pina Bausch), o corpo é relâmpago, trovão, raio, mutação, moda, prótese, símbolo.

E se a música e a dança são artes do corpo, o cinema — a arte da luz, do tempo e da presença — é também feito da sua dimensão física. Nele, o corpo manifesta-se, na representação, na sonoplastia, no argumento, na realização, na imagem, na montagem, na experiência do espectador. O corpo dança com a câmara em filmes como Serenata à Chuva (Gene Kelly e Stanley Donen), All That Jazz (Bob Fosse), Flashdance (Adrian Lyne) ou As Donzelas de Rochefort (Jacques Demy), onde o movimento coreografado se torna uma celebração visual — o chamado «ciné-danse». Mas o corpo também é imagem idealizada de desejo e fetiche, projectados sobre personagens como Madeleine em Vertigo (Alfred Hitchcock), Gilda no filme homónimo (Charles Vidor) ou Lola Lola em O Anjo Azul (Josef von Sternberg). Na ficção científica interroga-se, através do corpo, os limites do humano e do tecnológico: Robocop (Paul Verhoeven), O Exterminador Implacável (James Cameron) e Blade Runner (Ridley Scott). Há ainda o corpo vulnerável, marcado pelo tempo e pela doença, como em Amor (Michael Haneke) e O Pai (Florian Zeller), onde o envelhecimento se inscreve na carne e na memória. Corpos dissidentes, queer, não-normativos, que desafiam os modelos clássicos de representação, emergem em filmes como Paris is Burning (Jennie Livingston), Retrato da Rapariga em Chamas (Céline Sciamma), Tangerine (Sean Baker). Em Duas Horas na Vida de Uma Mulher (Agnès Varda) e Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman), o corpo feminino não é só visível, mas politizado, atravessado por rotinas e olhares que expõem uma representação social e revelam uma identidade em construção. Em Antonioni, o corpo encarna a alienação existencial das personagens (A Aventura, O Deserto Vermelho, A Noite, Blow Up), enquanto em Cronenberg, o corpo é laboratório, mutação, experimentação, dissolução (A Mosca, Videodrome, Irmãos Inseparáveis, Crash). No cinema de Steve McQueen o corpo é território de conflito — racial, político, sexual, existencial (Fome, Vergonha, 12 Anos Escravo, Lovers Rock).

O cinema português mostra uma relação entre identidade, desejo e marginalidade através dos corpos filmados por Cláudia Varejão, João Pedro Rodrigues, Teresa Villaverde e Pedro Costa (que nesta edição da Electra conversa memoravelmente com o fotógrafo Jeff Wall).

O corpo é, assim, o íman de todas as atracções e representações, actuações e projecções, encenações e mitificações, desejos e disputas.

O corpo é anatomia e fisiologia, álgebra e geometria, texto e contexto (muitas vezes também pretexto), forma e conteúdo, imagem visual e acção performativa, modelo e instrumento, meio e fim, móbil e dispositivo, sujeito e objecto científico de investigação (antropologia, sociologia, história, politologia, medicina, matemática, química, física, moral) e artístico de criação (dança, teatro, música, cinema, escultura, pintura, fotografia, performance).

Dos hábitos de higiene às técnicas do trabalho, das rotinas quotidianas aos rituais festivos, dos jogos eróticos às exibições mundanas, das condutas privadas aos comportamentos públicos, da exploração comercial ao combate agonístico, da vigilância política à disciplina social, do controlo médico à monitorização judicial, dos usos económicos aos abusos laborais, da coerção religiosa à compulsão moral, de tudo isto tratam as histórias do corpo.

É claro que esta é uma história que contém e transporta muitas histórias. A história do corpo da mulher é muito diferente da história do corpo do homem. Diversa é também a história do corpo da senhora e a do corpo da criada. Muito distintas são a história do corpo do camponês e a do corpo do nobre, a do corpo do militar e a do corpo do padre, a do corpo urbano e a do corpo rural, a do corpo homossexual e a do corpo heterossexual. Estas histórias do corpo e dos corpos constituem, no nosso tempo, uma fonte inesgotável de descobertas e de surpresas — e são um recurso inestimável para a compreensão do nosso ser e do nosso existir.

A pergunta «o que é o corpo?» tem muitas respostas e eis uma delas: o corpo é aquilo que fomos fazendo dele e como o pensámos, o figurámos, o desejámos, o avaliámos.

Se há muitas artes do corpo, há também muitas filosofias do corpo (Platão, Aristóteles, Descartes, Pascal, Locke, Espinosa, Kant, Nietzsche, Hegel, Kierkegaard, Husserl, Bergson, Heidegger, Apel, Sartre, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Popper, Wittgenstein, Foucault, Deleuze). E há uma teologia católica monoteísta do corpo (a Encarnação, o Corpo Crucificado e Ressuscitado, o Corpo Glorioso, o Corpo Místico, Teilhard de Chardin, João Paulo II), assim antes houve uma antropologia pagã e politeísta do corpo.

Tal como disse Blaise Pascal, falando do Universo, o corpo é uma esfera cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma.

Na literatura, o corpo induz e seduz, atrai e repele, condena e salva, mata e morre. É tema e motivo, motor da acção. Nela, há corpos de todas as formas e feitios, para todas as funções e ficções: o corpo do herói guerreiro, de Homero, e o corpo do homem invisível, de H. G. Wells; o corpo-figura, de Dante, e o corpo-lugar do amor e da doença, de Thomas Mann; o corpo do Fausto que vendeu a alma a Mefistófeles, de Goethe, e o corpo de O Nariz, de Gógol (estes motivaram óperas de Gounod e Shostakovich); o corpo-noite dos crimes, de Sade, e o corpo-dia dos jogos, de Casanova; o corpo-monstro construído pelo Frankenstein de Mary Shelley e o corpo-vampiro do Drácula de Bram Stoker; a metamorfose animal do corpo em Kafka e a metamorfose de género no corpo do Orlando de Virginia Woolf; o corpo-pecado da Madame Bovary de Flaubert e o corpo-território e mapa da memória sensível de Proust; o corpo-monólogo de Molly Bloom no Ulisses, de Joyce, e o corpo duplicado em Artaud; o corpo no «outro estado», de Musil, e o corpo bárbaro, de Bohumil Hrabal; o corpo de O Amante chinês, de Duras, e o corpo do amante em Uma Paixão Simples, de Annie Ernaux; o corpo da mãe de Didier Eribon (Vie, vieillesse et mort d’une femme du peuple) e o corpo do pai de Édouard Louis (Quem Matou o Meu Pai); o Corpo Visível de Cesariny e a Blimunda Sete-Luas no Memorial do Convento, de José Saramago, que vê o que está dentro dos corpos — e às vezes, no interior da terra.

Daniel Pennac deu a um dos seus livros o título Journal d’un corps [Diário de um corpo], no qual diz: «Somos, até ao fim, filhos do nosso corpo.»

E Marguerite Yourcenar dá a Adriano, o imperador doente, que começa a avistar o perfil da sua morte fazendo por isso o balanço da sua vida, esta meditação:

Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado que acabará por devorar o seu dono. Basta…

Amo o meu corpo; serviu-me bem de todas as maneiras, e não lhe regateio os cuidados necessários.

O corpo de Adriano era o corpo do homem e do imperador, do supremo chefe administrativo e do pontífice religioso, do guerreiro e do amante feliz e depois inconsolável, do construtor de muralhas e de mausoléus e do incansável amador de arte da Villa Adriana, do homem de Estado romano e do letrado grego. Era como se nesse corpo do Príncipe, antes vigoroso e viajante, depois doente e débil, estivesse presente a grandeza, a sabedoria, a ambição, o desejo, a vitória, mas também já o início da decadência inexorável do mundo antigo.

Analisando a ligação do poder ao corpo, o historiador alemão Ernst Kantorowicz escreveu a obra Os Dois Corpos do Rei, que se tornou um clássico da história das instituições, do Direito e da filosofia política.

O poeta sabia que no mundo tudo passa, excepto as grandes leis ocultas e as perigosas palavras que as dizem. Vivendo contra o seu corpo e em fuga do seu rosto, Fernando Pessoa fez da poesia o seu corpus e da prodigiosa máquina heteronímica que montou uma estranha filosofia do corpo e da ausência dele em si próprio e nos outros.

Diz Pessoa: «O meu corpo é o abismo entre eu e eu.»
De um dos seus poemas esotéricos:

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui

De Bernardo Soares:

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito como através dele compreender? […]

Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro. […]

Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

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Edward Steichen, Balzac (The Open Sky) [Balzac (O céu aberto)], 1908 (Auguste Rodin, Balzac, 1892-1897) © Fotografia: Scala, Florença / Espólio de Edward Steichen / ADAGP, Paris / Patrice Schmidt / Musée d’Orsay, Paris

 

Chamando-lhe «abismo» e «queda», Pessoa faz do corpo um logro, uma ilusão, uma ameaça e um perigo, às vezes uma alucinação, um inimigo e um obstáculo, retomando a filosofia platónica e neoplatónica (o corpo é o cárcere ou o túmulo da alma), mas também algumas das mais antigas tradições herméticas e gnósticas (a alma é a luz e o corpo é a treva).

Desconfiado e descontente com este jogo perverso que leva todo o ser ao seu nada, Mário Cesariny, no livro O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às criancinhas naturais e estrangeiras, dá ao poeta e aos seus heterónimos o corpo e o sexo que lhes permitem trocar as palavras por aquilo que as palavras escondem, ou dizem baixinho quando não escondem.

Jorge Luis Borges profetiza: «Sonhará um mundo sem a máquina e sem essa doente máquina, o corpo. A vida não é um sonho, mas pode chegar a ser um sonho.»

«O corpo» é o tema do dossier deste número da Electra. Com as palavras que nos fazem ver melhor o que vemos, olhamos, como voyeurs discretos e impenitentes, para o corpo e para os corpos e damo-nos conta de que pensar este tema nos entrega um contributo decisivo para a compreensão do nosso incerto tempo e do nosso perigoso mundo.

Nos nossos dias, o corpo, nas suas mutações e próteses, inscrições e rasuras, modos e modas, afirmações e negações, transformações e subversões, é um medium, uma mensagem e mesmo um manifesto. Mais do que nunca, é hoje um lugar (ameaçado) de liberdade e libertação, de escolha e decisão, de vontade e imaginação. Mais e melhor do que antes, o nosso corpo tornou-se móvel, mutável, movediço, instável, transitório e precário. E altamente perigoso.

O enorme interesse contemporâneo pelo corpo pode ser observado, entre outros entusiasmos, nas muitas exposições que, sobre e sob o tema, têm sido apresentadas nos últimos anos: L’Âme au corps. Arts et sciences, 1793-1993 (curadoria de Jean Clair), Les visages et les corps (curadoria de Patrice Chéreau), Corps et âmes (curadoria de Emma Lavigne), Rodin/Bourdelle. Corps à corps, Corps à corps. Histoire(s) de la photographie, Corps invisibles: un enquête autour de la Robe de chambre du Balzac, Touching You I Catch Midnight, Incarnations, Body Worlds, L’ épreuve des corps, Bodies, Degas et le nu, Picasso Sculptor. Matter and Body, Francis Bacon: Human Presence, Au travers du corps, Le corps en mouvement, Corps rebelles, Le corps découvert, La nudité, vue pour les femmes, Nudity is not Radical! e L’Intime, de la chambre aux réseaux sociaux.

Na História do Corpo, a obra monumental dirigida por Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello, diz-se:

Jamais, antes do século XX, o corpo humano tinha conhecido tais convulsões. As profundas transformações, sentidas até na carne, são tantas como as mutações dos olhares que se deitam a ele.

A mudança da relação entre saúde e doença, corpo normal e corpo anormal, vida e morte numa sociedade medicalizada por completo; o afrouxamento de disciplinas herdadas do passado, a legitimidade concedida ao prazer ao mesmo tempo que a emergência de novas normas e de novos poderes, biológicos e políticos; a procura do bem-estar individual e a extrema violência de massas, o contacto das peles na vida íntima e a saturação do espaço público pela frieza dos simulacros sexuais: tais são alguns dos paradoxos e dos contrastes no seio dos quais se constituiu a relação do sujeito contemporâneo ao seu corpo.

Um outro desafio surgiu agora: interrogar o corpo neste século feliz e trágico não é uma maneira de pôr a questão do humano? Na hora em que proliferam os corpos virtuais, onde se transaccionam o sangue e os órgãos, onde desaparece a fronteira entre o mecânico e o orgânico, onde nos aproximamos da programação da espécie e da replicação do indivíduo, é mais do que nunca necessário encontrar o limite do humano: «O meu corpo é ainda um corpo?» A história do corpo está apenas a começar.

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Yves Klein, Anthropométrie [Antropometria], 1962 © Fotografia: Scala, Florença / Museum Associates / Art Resource, Nova Iorque / Los Angeles County Museum of Art (LACMA), Los Angeles

 

É do corpo e do corpo no tempo e no mundo que falamos. Há mundos onde, quanto ao corpo, aos seus usos e à sua autodeterminação, nada mudou e a opressão secular, a censura implacável e a repressão policial permanecem e até se agravam. Nesses mundos, em nome de uma moral religiosa do corpo, de uma prática cultural arcaica, de um ambiente social rígido, de um regime político-jurídico totalitariamente imutável, continuam as perseguições, as humilhações, as exclusões, as excomunhões, as agressões, as condenações (mesmo à pena de morte), os assassínios.

Entretanto, no nosso mundo muitas coisas mudaram nas últimas décadas. Mudou a relação de cada um de nós com o próprio corpo, a relação do nosso corpo com o corpo dos outros, a relação do corpo com o género e com o sexo, a relação do corpo individual com o corpo social, a relação do corpo biológico com o corpo cultural, a relação do corpo humano com o corpo animal, a relação do corpo físico com o corpo etário (no corpo há o krónos e o kairós). Vivemos uma nova ecologia do corpo. E também uma nova economia e uma nova biopolítica.

Mas há outras perguntas que agora se fazem. Qual é a solidez, o alcance e a durabilidade dessas mudanças? Quais as garantias de irreversibilidade e os riscos de regressão? Configuram elas uma nova e surpreendente ordem que tem a afirmação (e não a velha negação) dos corpos no seu centro? Em nome dessas necessárias e imperativas mudanças, numa simetria perversa, cometeram-se exageros e, como alguns acusam, criaram-se formas de vigilância e de censura mais actuais e agressivas, substituindo a antiga opressão por outras opressões mais contemporâneas? Há alguma razão nessas observações ou será que tais acusações são, vindas de quem habitualmente vêm, apenas a máscara com que se disfarçam e escondem os que desejam manter inalterada a velha ordem e nunca admitiram transformações nem progressos?

A nossa atitude perante o corpo dá, por tudo isto, a medida do nosso respeito para com os outros e põe a nu a nossa ideia de liberdade. Porque é no corpo que a liberdade e a tirania começam. É no corpo que o antes se faz depois.

Com as suas imagens e os seus rituais, as suas artes e as suas sabedorias, as suas memórias e as suas ficções, o corpo é um fundo e um fulcro da cultura japonesa. Nesta edição, dedicamos vários ensaios ao Japão.

Nas palavras e nas imagens que revelamos está o corpo, no seu fulgor e no seu furor. Olhamos estes corpos e o nosso olhar acrescenta-se de fascínio. Esse era o fascínio que o grande poeta e artista plástico Henri Michaux tinha pelo Japão. Michaux escreveu um dia (em Qui je fus): «Ele ia lentamente, o mais lentamente possível para que a sua alma pudesse alcançar o seu corpo.» Talvez estivesse a falar de nós.