Assunto
Roger Chartier: A ordem dos livros e as transformações da leitura
António Guerreiro

O contributo para este dossier do historiador Roger Chartier, uma referência mundial na história do livro, da edição e da leitura, assumiu a forma de uma entrevista onde se fala da ordem dos livros e das revoluções da leitura, incluindo aquela imposta pelas tecnologias digitais e pela aceleração que elas determinam.

O historiador francês Roger Chartier é uma autoridade internacional na história do livro, da edição e da leitura. É herdeiro da escola dos Annales, a revista fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, órgão de um novo movimento historiográfico que privilegiou muito mais os fenómenos sociais, económicos e culturais do tempo longo do que os acontecimentos. Os seus trabalhos sobre a história do livro e da leitura inscrevem-se precisamente na metodologia de uma história cultural que presta atenção a certos objectos (neste caso, o livro, encarado sobretudo nas suas funções e utilizações) afastados das preocupações historiográficas. A historiografia praticada por Roger Chartier tem uma dimensão fortemente interdisciplinar, como se pode perceber pelo diálogo que estabelece com o filósofo Michel Foucault e com o sociólogo Pierre Bourdieu. Director de Estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales e, a partir de 2007, professor na mais alta instituição do ensino superior em França, o Collège de France, Roger Chartier é autor de uma obra imensa, da qual importa aqui destacar os quatro volumes da sua Histoire de l’édition française (co-dirigida por Henri-Jean Martin), a Histoire de la lecture dans le monde occidental (co-editada com Guglielmo Cavallo) e Culture écrite et société: L’ordre des livres.

ANTÓNIO GUERREIRO  O que é um livro? A resposta que Kant deu a esta pergunta, colocada por ele mesmo, continua a ser actual ou será que, na época do Iluminismo, um livro era algo diferente do que é hoje?

ROGER CHARTIER  O que é um livro? A questão não é nova. Kant formulou-a explicitamente em 1797, nos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. A primeira razão para a fazer foi o seu envolvimento no debate sobre a propriedade literária e a contrafacção de livros iniciado então na Alemanha. Esta discussão, que envolveu filósofos, poetas e editores, teve que ver com as características específicas da edição no Império Germânico. A fragmentação política do império impunha fortes limites aos privilégios das livrarias, que só eram legais num determinado território, muitas vezes restrito. Por conseguinte, a reprodução das obras fora da soberania que concedia o privilégio era maciça e, embora fosse considerada legalmente legítima pelos editores-livreiros situados noutros estados, era tida como intelectualmente ilegítima pelos autores e pelos primeiros editores, que se sentiam injustamente espoliados dos seus direitos. Mas há uma outra razão, que está desligada de qualquer circunstância específica. Enquanto «produto material», o livro é objecto de um direito real, definido como o direito sobre uma coisa que autoriza o seu uso privado, partilhado por todos aqueles que estão na posse da mesma coisa — por exemplo, os compradores dos vários exemplares de uma edição. Mas o livro é também um discurso e, portanto, objecto de um direito individual que justifica uma propriedade única e exclusiva. É, simultaneamente, um bem material do qual o comprador se torna o legítimo proprietário e um discurso cujo autor detém a propriedade «não obstante a reprodução», como escreveu Kant. Neste segundo sentido, o livro é entendido como uma obra que transcende todas as suas possíveis materializações. A associação kantiana entre «opus mechanicum» e «discurso», que funda a noção de propriedade literária, dá uma forma laicizada à antiga metáfora que, comparando o livro com o ser humano, lhe atribui um corpo e uma alma inseparavelmente ligados. Esta associação entre o objecto e o discurso foi mantida por todas as formas sucessivas do livro: tábuas sumérias, pergaminhos gregos e latinos antigos, códices manuscritos, livros impressos. Com os pergaminhos antigos, uma única obra era dividida em vários livros; com o códice, manuscrito ou impresso, um único livro podia conter várias obras. A originalidade radical do mundo electrónico foi a de estabelecer uma separação drástica entre o suporte e o discurso. O ecrã é o suporte de todos os textos que o seu utilizador convoca ou produz. Não está de modo algum ligado a um discurso particular, como acontece com os livros. Um «livro electrónico» não é verdadeiramente um livro, uma vez que a identidade do seu discurso já não é materializada pelo objecto que o contém e transmite. No mundo da textualidade digital, os discursos já não estão inscritos em objectos que permitam reconhecê-los na sua identidade própria. O mundo digital é um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos.

© Trinity College Dublin, The University of Dublin, Dublin

© Trinity College Dublin, The University of Dublin, Dublin

 

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

 

"Um livro electrónico não é verdadeiramente um livro, uma vez que a identidade do seu discurso já não é materializada pelo objecto que o contém e transmite."

AG  Na história do livro, que cesuras, ou revoluções, ocorreram? A palavra «crise», esse termo quase obrigatório em todos os diagnósticos do nosso tempo, e não apenas económicos, tem uma aplicação legítima ao mundo dos livros? Ou, se ela existe, trata-se de uma crise da edição e não do livro em si?

RC  Ao romper o antigo laço entre o texto e o objecto onde ele está inscrito, entre os discursos e as suas materialidades próprias, o mundo digital obriga a uma radical revisão dos gestos e das noções associados à escrita. Não devemos menosprezar a originalidade do nosso presente. As diferentes transformações da cultura escrita que no passado foram sempre separadas apresentam-se no universo digital em simultâneo. A revolução da comunicação electrónica é ao mesmo tempo uma revolução da técnica de produção e reprodução dos textos, uma revolução da materialidade e da forma de suporte e uma revolução das práticas de leitura. Estabeleceu-se assim uma nova ecologia da escrita, caracterizada vários cortes. O primeiro é o uso do mesmo suporte para ler e escrever. No mundo pré-digital, os objectos destinados à leitura dos textos impressos (livros, revistas ou jornais) e os objectos onde se registavam as escritas pessoais (folhas, cadernos, cartas) eram separados. No mundo electrónico, é sobre o mesmo ecrã que se associam estreitamente as duas práticas dos novos wreaders, leitores que escrevem e escritores que lêem. Uma segunda característica do mundo digital estabelece a continuidade morfológica entre diferentes categorias de discurso: mensagens das redes sociais, informações dos sites, livros ou artigos electrónicos. Desaparece assim a noção de diferença a partir da sua materialidade própria. Esta continuidade apaga os procedimentos tradicionais da leitura, que supunham tanto a compreensão imediata — graças à sua forma de publicação, do tipo de conhecimento ou prazer que o leitor pode esperar de um texto — como a percepção das obras enquanto dotadas de identidade, totalidade e coerência próprias. Daí uma terceira característica. Sobre a superfície luminosa do ecrã aparecem fragmentos textuais sem que se possa ver imediatamente os limites e a coerência do texto ou do corpus (livro, exemplar da revista ou de outra publicação) de onde são retirados. Com a leitura descontínua, segmentada, dos textos digitais, passa-se da autonomia aos fragmentos, transformados em unidades textuais descontextualizadas. A verdade é que não é o ecrã digital que convida a fragmentar as obras. Era já isso que impunham tanto a leitura tipológica da Bíblia, que compara partes dos Evangelhos com as suas prefigurações no Antigo Testamento, quanto a técnica intelectual humanista dos lugares-comuns, que exigia extrair e copiar citações dos livros lidos para constituir um repertório de fórmulas reutilizáveis. Contudo, não nos devemos enganar por esta semelhança morfológica. A fragmentação dos textos tem um sentido diferente consoante esteja acompanhada da percepção da totalidade textual contida no objecto escrito, tal como a propõe a materialidade do códice, ou se desfaça o laço visível entre o fragmento e a totalidade a que pertence. No mundo digital é a própria noção de fragmento que se torna problemática, já que ela supõe sempre a percepção de uma totalidade, presente ou desaparecida. A ruptura produzida pela ecologia digital da escrita não tem equivalente no passado. A invenção da imprensa no século XV foi uma revolução técnica fundamental, mas não transformou a estrutura do livro, composta, desde os primeiros séculos da era cristã, pelo códice organizado em cadernos, folhas e páginas reunidas numa mesma encadernação. O aparecimento e difusão do códice entre os séculos II e IV da era cristã foi uma revolução morfológica fundamental, tendo substituído os pergaminhos dos Antigos por uma nova forma de livro, mas não transformou a técnica de reprodução dos textos que até Gutenberg era somente a cópia manuscrita. As várias revoluções da leitura aconteceram quer na estabilidade morfológica do códice (como no caso da generalização da leitura silenciosa), quer na estabilidade técnica da impressão (como no caso da revolução da leitura no século XVIII ou da democratização da leitura, tornada possível pela alfabetização escolar e pelas estratégias editoriais no século XIX). A simultaneidade das mutações técnicas, morfológicas e culturais que caracterizou a revolução digital é uma realidade sem precedentes.

"A invenção da imprensa no século XV foi uma revolução técnica fundamental, mas não transformou a estrutura do livro, composta, desde os primeiros séculos da era cristã, pelo códice organizado em cadernos, folhas e páginas reunidas numa mesma encadernação."

© Photos: Biblioteca Nacional, Madrid

© Photos: Biblioteca Nacional, Madrid

 

AG  Ao longo da história do livro, houve também uma transformação dos modelos ou regimes de leitura?

RC  Relativamente ao tempo da primeira modernidade, a sua pergunta liga-se à «revolução da leitura» do século XVIII. Numerosos textos desse século (relatos de viagem, descrições das cidades, memórias) insistem na nova universalidade da leitura, presente em todos os meios sociais, em todas as circunstâncias da vida, em todos os lugares do quotidiano. Segundo eles, uma verdadeira «mania da leitura», transformada numa «febre de leitura» ou «fúria de ler» (os textos alemães falam de Lesesucht, Lesefieber ou Lesewut), tinha-se apoderado das populações. Também o discurso filosófico faz surgir um olhar negativo sobre o excesso de leitura. Estigmatiza a leitura de passatempo como um verdadeiro «narcótico», palavra usada por Fichte. Por outro lado, o imaginário proposto pelos artistas — da pintura, do desenho e da gravura — faz proliferar as representações da leitura nos quadros e nas gravuras, nos adornos das louças de faiança ou de porcelana, nas telas ou nos relógios de bolso, sob a forma de silhuetas e figurinhas. Esse imaginário revela novos leitores — mulheres, crianças, artesãos, camponeses — e novos hábitos, tais como a leitura ao ar livre, no jardim ou na natureza, a leitura enquanto se caminha, a leitura na cama, que prepara ou substitui o encontro erótico, a leitura para um auditório, na sociabilidade dos salões ou em reuniões de família. Todas essas representações indicam, à sua maneira, que as práticas mudaram, que os leitores são mais numerosos e fanáticos ou apaixonados pela leitura. Deveremos traduzir essas percepções pelo conjunto de noções construídas por Rolf Engelsing, que opõe uma leitura tradicional, dita «intensiva», a uma leitura moderna, qualificada de «extensiva»? Segundo essa dicotomia, o leitor «intensivo» era confrontado com um corpus limitado e fechado de textos, lidos e relidos, memorizados e recitados, compreendidos e conhecidos de cor, transmitidos de geração em geração. O leitor «extensivo» é completamente diferente: consome em grande quantidade as novidades impressas, efémeras, lendo-as com rapidez e avidamente, e aborda-as com um olhar distanciado e crítico.

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