Nos jardins que ladeiam a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO), sons de excitação enchem o céu limpo. Uns minutos depois, um grupo de adolescentes desfila alegremente, sem saber que ali ao lado um outro adolescente como eles ilustra Le Cercle de famille. Ou impressions d’ensemble. É um dos primeiros cahiers, datado de 1947, de um jeune garçon chamado Jean-Luc Godard (1930−2022), uma sátira antifamiliar e antiburguesa que o próprio fez o obséquio de oferecer aos pais no Natal. Como todo o antiburguês que se preze, Godard nasceu num abastado bairro parisiense, membro de uma burguesíssima e protestante família de grandes posses. Foi o segundo filho de Paul Godard, médico, e de Odile Monod, cujo pai, Julien Monod, era um proeminente banqueiro francês e homem erudito. Com um avô anti-semita e apoiante de Vichy, o pequeno Jean-Luc cresceu a torcer pelo Terceiro Reich, sofrendo com a capitulação dos nazis em El Alamein, no Egipto, tal qual dá nota Richard Brody em Everything Is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard, como se de uma derrota clubística se tratasse (interessante pensar nisto através do modo como Godard insistentemente convocará o Holocausto em toda a sua obra). Quatro anos após o seu nascimento, a família muda-se para a Suíça, onde Jean-Luc disse um dia ter vivido uma infância idílica, rodeado de erudição, mas também de desporto e actividade física. Le Cercle de famille, desmentido de tudo isso e no qual se desenha a ser apedrejado pela família, integra a exposição com a curadoria do colectivo Au Contraire, em que se acompanha, de forma cronológica — de 1940 a 2022, ano em que o cineasta decidiu recorrer à morte assistida em Rolle, na Suíça, onde vivia há décadas —, o percurso plástico de Godard, até aqui inédito. Muito do material (descoberto em espaços de terceiros, pois o Grande Arquivista da História do Cinema nunca foi um arquivista das suas memórias) foi uma surpresa para os próprios curadores. A estrutura divide-se entre os anos 40, década concentrada numa sala onde pontuam os cahiers, com pinturas, guaches, tinta-da-china sobre papel e copiosas anotações/citações; e, na sala de maior dimensão, toda a sua actividade de 1960 a 2022, composta pelos múltiplos cadernos de trabalho de pré-produção, rodagem e mesmo pós-produção (Godard «continuava» o filme mesmo depois de ele estar concluído, fazendo collages e anotando-as), tanto de filmes realizados, como de projectos nunca concretizados ou, simplesmente, reflexões avulsas que, em alguns casos, viriam a integrar filmes (como em História(s) do Cinema). Cadernos que se, no início de carreira, funcionavam como mapas referenciais para os filmes a rodar, nos derradeiros anos passaram a constituir-se nos próprios filmes, indicando, com pormenor, a sua minuciosa anatomia.
Jean-Luc Godard não foi apenas um dos mais importantes realizadores da história do cinema, foi também autor de uma extensa obra plástica — pintura, guache, desenho, fotografia. O diálogo entre estas duas faces esteve na base de uma grande exposição na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, intitulada Tendo em Linha de Conto os Tempos Actuais. A exposição e a revisão da filmografia de Godard fornecem a Francisco Noronha a matéria principal para uma visão ampla do percurso biográfico e artístico do realizador.

Jean-Luc Godard, auto-retrato, 2020
no princípio era a cor
O primeiro caderno até agora conhecido tem como título Peinture par IAM, datado de 1940 (tinha então apenas dez anos!), um conjunto de dez pinturas em que figurativismo, abstraccionismo e geometrismo convivem ludicamente. Foi Rachel, a sua irmã mais velha, artista e professora, que o introduziu na pintura e no abstraccionismo e suas múltiplas declinações, mormente no trabalho de Nicolas de Staël (em quem Godard disse ter-se inspirado para a cor de Pedro, o Louco, de 1965). As cores de Peinture par IAM são o prenúncio daquelas que perpassarão O Elogio do Amor (2001), Filme Socialismo (2010) e Adeus à Linguagem (2014). A acompanhar as pinturas, um texto em que, a partir de uma frase de Pascal («Que vaidade é a pintura, que atrai a admiração pela semelhança relativamente a coisas cujo original não admiramos»), Godard logo aí reflecte sobre a natureza da imagem («A imagem ou pintura colorida só existe em relação a quem a olha, e a relação que podemos chamar de pictórica é sempre intencional»). Técnica de citação e reapropriação de que faria exaustivo uso na sua obra fílmica, como, de resto, vetustas edições de Camus (O Mito de Sísifo) ou Pascal (Pensamentos e Opúsculos), profusamente rascunhadas, dão também nota. Le Cercle de famille, panfleto cheio de humor e auto-ironia — qualidades extensíveis à sua filmografia e nunca devidamente analisadas, pois Godard levava-se menos a sério do que sempre desejaram os seus detractores —, foi concebido um ano após Godard ter saído de Nyon (1946) para estudar em Paris, onde se preparou para os exames de engenharia (!). Mas já por essa altura o cinema se metia pelo caminho: ávido leitor da Revue du cinéma (predecessora dos Cahiers du cinéma) e frequentador da Cinemateca Francesa e do «ciné-club du Quartier Latin» (em cuja revista Gazette du cinéma publicou os primeiros textos), começara também a escrever argumentos, encontrando-se patente na exposição uma amostra do primeiríssimo deles (uma adaptação do romance Aline, de Ramuz).
"A imagem ou pintura colorida só existe em relação a quem a olha, e a relação que podemos chamar de pictórica é sempre intencional." (Jean-Luc Godard)
O resultado foi o chumbo nos exames em 1948 e o regresso à Suíça. Finalmente aprovado, retornaria a Paris no ano seguinte, onde se candidatou ao Institut des Hautes Études Cinématographiques, a mais reputada escola de cinema francesa, e foi rejeitado. Cursando Etnologia na Sorbonne, rapidamente desiste, empenhado que estava em ser escritor. Em Dezembro de 1950, abandona novamente a capital para evitar a chamada à guerra na Indochina Francesa e, num momento em que o casamento dos pais já havia ruído, vai ter com o pai e a irmã Véronique a Nova Iorque, de onde partem para uma longa viagem de barco pela América Central e do Sul. Muito pouco se sabe desta viagem, de que nunca quis falar, mas que, de acordo com os mais próximos (François Truffaut ou Jacques Rivette), o alterou profundamente. Voltou fechado, circunspecto. Segundo Colin McCabe (autor de Godard: A Portrait of the Artist at Seventy), a viagem para Jean-Luc terá terminado quando Paul Godard não se dispôs a continuar a sustentá-lo, tendo ele, depois de tentar prostituir-se em Copacabana para ganhar algum dinheiro, voltado a Paris, onde começa a escrever para os Cahiers e interpreta o protagonista de Présentation ou Charlotte et son steak (1951), primeira curta do amigo Éric Rohmer. Ora, os retratos «parentais» do jovem Godard presentes na CCMO (ambos pinturas a óleo, datadas de 1947), distantes de qualquer imperativo realista, indiciam, nas suas distintas abordagens, as também distintas facetas da relação mantida com os progenitores. O retrato de Odile Monod, na sua fácies (de bela) adormecida e delicada, mas também nas suas cores quentes e arredondadas formas, é uma pista decisiva para a cumplicidade e ternura que sempre recebeu da mãe. Um ambiente infantil, fantasista até, e de grande candura domina a tela, e que mesmo o fundo negro curiosamente nada contraria; a expressão, essa, piedosa como Maria, Mãe de todas as mães. Por sua vez, o retrato de Paul Godard (nome da personagem, um realizador afastado da ex-mulher e da filha, de Salve-se Quem Puder, filme de 1980), o pai, destaca-se pela figuração deliberadamente desconstruída, traço duro e lesto, a cor — agora predominando o castanho e um vermelho-fúria — expressando a distância entre o pintor e o sujeito da sua atenção. Composição onde o negro do fundo se volve agora inquietante, talvez maligno, e onde a fisionomia facial (os lábios comprimidos, o olhar inquisidor, o nariz autoritário), angulosa onde a de Odile era torneada, não deixa de possuir algo de monstruoso ou bestial.
"Com apenas treze primaveras, Godard ilustra os versos de Valéry, de quem chegou a receber aulas de Latim."


Jean-Luc Godard, História(s) do Cinema, 1988
Curiosamente, a pintura partilha algumas semelhanças com o auto-retrato, visível na entrada da exposição, em que Godard, a partir de uma selfie obtida com o telemóvel (tipo de imagem digital que muito praticou), a distorce desenhando e pintando por cima. Outras cinco pinturas a óleo, também do círculo familiar, prolongam estes motivos, noutros casos divergindo ou expandindo-os. Une-as o uso proeminente da cor e um alternar entre a proximidade e o afastamento do modelo figurativo, mesmo no caso do retrato — é o que acontece em La Petite fille aux nattes, cujo pontilhado multicolor, evocando o abstraccionismo geométrico, compõe a silhueta da irmã Véronique. Mas a pista abstraccionista é ainda mais antiga. Todos os anos, no aniversário de casamento dos pais, Godard recitava o célebre poema «O cemitério marinho», de Paul Valéry, amigo íntimo do avô Julien. Em 1943, com apenas treze primaveras, Godard ilustra os versos de Valéry, de quem chegou a receber aulas de Latim, num conjunto pictórico realmente interessante. Além de dois retratos (um deles do próprio Valéry), o abstraccionismo (por vezes avultando alguns motivos cubistas) ganha aqui renovada originalidade e arrojo, formas e cores exuberantes com o ambiente marinho latente.
militância e (auto-)reflexão
No Outono de 1952, depois de uma visita à caixa registadora dos Cahiers, Godard volta à Suíça, onde a mãe lhe arranja trabalho na televisão. A nova investida, desta vez ao cofre da televisão, vale-lhe uns quantos dias na prisão, que só terminam graças à intervenção do pai, que o interna numa clínica psiquiátrica. É novamente a mãe que vem em seu socorro e, pelo final do ano, o filho passa a viver consigo. Nesse Natal, conhece Jean-Pierre Laubscher, amante de Odile, dezoito anos mais novo do que esta e apenas três anos mais velho do que ele. É Laubscher, estudante de Engenharia e aspirante a escritor que trabalhava na gigantesca barragem de Grande-Dixence, quem arranja trabalho a Godard (primeiro com balde e picareta, depois como telefonista). Estavam lançados os dados para o seu primeiríssimo filme, a curta Opération Béton (filmada em meados dos anos 50), retrato — registo documental sabotado pelo tom poético da narração em off — da construção da então mais alta barragem do mundo. Em 1954, Odile morre tragicamente num acidente de mota após uma violenta discussão com o filho Claude. Quando Jean-Luc acorre ao funeral da mãe, em Lausanne, a família Monod barra-lhe a entrada, não lhe perdoando o roubo de edições originais de Valéry e de um quadro de Renoir do acervo familiar para se sustentar em Paris. Em 1956, de volta à cidade, Godard apresenta a um produtor um argumento (nunca concretizado) intitulado… Odile (baseado na personagem Ottilie de As Afinidades Electivas, de Goethe).
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