Editorial
O livro por vir
José Manuel dos Santos e António Soares

Numa rua que imaginamos estar certa para poder aí haver o sítio aonde queremos ir, encontramos um daqueles grandes alfarrabistas, cada vez mais raros, que parecem existir para neles se conterem todos os livros, de todos os tempos, de todos os mundos.

Gustav Adolf Hennig

Gustav Adolf Hennig, Lesendes Mädchen [Rapariga a ler], 1828 © Fotografia: Ursula Gerstenberger / Scala, Florença / bpk, Bildagentur für Kunst, Kultur und Geschichte, Berlim / Museum der bildenden Künste, Leipzig

 

Reunidos aí, quer pela mão direita do destino, seja pela mão esquerda do acaso, aqueles imensos livros compõem uma geografia, onde o longe e o perto se perseguem, e uma história, que vai e vem das eras mais remotas às idades mais recentes.

Entramos nesses tempos e nesses espaços, que criam um ambiente ao mesmo tempo sossegado e intenso. Com o que está disposto nas largas estantes e o que está deposto no longo chão forma-se um labirinto de obras e de títulos por onde andamos numa lúcida alucinação em que a consciência toma conta de si própria para, como quer a fenomenologia, se tornar consciência do mundo.

Ao olharmos a sequência das lombadas e das capas, a propagação das palavras e das imagens, a insistência dos algarismos e dos sinais, a proliferação das matrizes, dos tipos e dos corpos tipográficos, a diferença de papéis, dimensões, formatos e cores, a variedade de impressões, encadernações e brochuras, sentimos a gravitação material de um universo em expansão incessante e em crescimento descontrolado e conquistador.

Ao vermos a acumulação de volumes, a multiplicidade de disciplinas, a multiplicação de géneros, a abundância de autores, a sucessão de eras e de épocas, a diversidade de estilos e de correntes, a pluralidade de línguas e de linguagens, experimentamos um susto arrepiado semelhante àquele que Blaise Pascal confessava sentir perante o silêncio eterno dos espaços siderais infinitos.

Andamos por ali e estamos em muitos tempos e em muitos mundos, porque estamos no interior de um tempo feito de outros tempos e dentro de um mundo cujo mapa é meticulosamente desenhado pelas viagens vindas até nós de outros mundos.

Estamos ali e o nosso tempo e o nosso mundo são como as cores de um Pantone composto de profusão e de possibilidades, de variedades e de variações, de contrastes e de aproximações, de escalas cromáticas e de gradações tonais.

Num alfarrabista convivem o velho e o novo, a quantidade e a qualidade, o grande e o pequeno, o mau e o bom, o génio e a mediocridade, a segurança e o perigo, a meditação e o tumulto, a aliança e o conflito, a guerra e o armistício, o amor e o ódio, a realidade e a imaginação, a pressa e o vagar, a expiração e a inspiração, o conhecimento e o desconhecido, o sublime e o vulgar, a salvação e a perdição.

Cada loja de alfarrabista é um atlas de lugares, um palco de personagens, um termómetro de temperaturas, um arquivo de provas, um laboratório de experiências, um inventário de documentos, um registo de nomes, um museu de monumentos, um catálogo de obras, um acervo de acontecimentos, um arrolamento de modos e de modas, um cadastro de prodígios.

É um caderno de exercícios de atenção, um salão de tentações, um jardim de delícias, um cemitério de túmulos, um campo de minas, uma escola de saberes, um consultório de decifrações, uma colecção de vestígios, um altar de auras, um gabinete de curiosidades, um domínio de demonstrações, um parque de atracções, uma tenda de sorte e de azar.

Agora, é num edifício feio e amplo aonde vamos mesmo sem querermos ir, e lá encontramos uma daquelas livrarias a que as escadas rolantes ou os elevadores velozes nos levam com um movimento repetitivo e mecânico que nos tira a fadiga e nos dá o tédio em troca.

Entramos e entramos num certame de marketing, numa feira de vaidades, num espectáculo estagnado, num entreposto comercial, num mercado de géneros, numa Disneylândia tecnológica, gráfica e tipográfica.

Em vez de encontrarmos os livros que desejamos encontrar, encontramos ecrãs, equipamentos, electrodomésticos, utensílios, aparelhos, dispositivos, máquinas, apetrechos, acessórios, gadgets.

Antes de encontrarmos os livros a que a sabedoria dos séculos deu critério, crédito e confiança, encontramos, com profusão e publicidade, as novidades fúteis e efémeras, os livros fáceis e utilitários: de entretenimento, auto-ajuda, bem-estar, literatura light (que contradição nos termos!). Ou, então, tratados de esoterismo barato, medicinas alternativas, alimentação saudável e dietas eficazes, guias para se ser jovem para sempre, manuais para se ter êxito na vida e para ganhar dinheiro rapidamente, prontuários para se tornar um génio, obras que ensinam a ser líder, a competir para vencer e a gostar de si próprio, compilações de piadas sem piada, romances de não-escritores, novelas «românticas» pueris, histórias de erotismo porno-imaturas, biografias e romances históricos sem fundamento histórico, panfletos de narcisismo político e propaganda pessoal, figuras, figurinhas, figurões e figuronas da televisão e influencers das redes sociais a contar a vidinha e a dar instruções e conselhos para cozinhar bem, vestir bem, maquilhar bem, dormir bem, viajar bem, amar bem, ou a prometerem ensinar o que não sabem.

Nestas plataformas de mercadorias, cada metro quadrado é dado e retirado, concedido ou negado, a cada «produto», de acordo com o volume de vendas e a rentabilidade facturada. Se a poesia não vende, não há lugar para a poesia. Se o ensaio vende pouco, dá-se pouco espaço ao ensaio. Se o romance que não é romance vende muito, investe-se nele, dando-se-lhe a primazia do espaço e o chamariz dos cartazes e dos ecrãs.

São os números das vendas que comandam todos os outros números e que mandam na estratégia e na logística do negócio. Um livro sobre o ócio é, antes de mais, um negócio de um livro sobre o ócio.

Para mais, a tendência editorial monopolista completa-se e reforça-se com a extensão do seu domínio e controlo de todas as acções e de todas as fases do longo caminho que vai do autor ao leitor.

Aqui não há imprevistos, nem improvisações, nem surpresas. O resultado assume a fatalidade do que tem de ser: o espaço mais vasto, o centro mais central, o escaparate mais visível, a bancada mais notória, a montra mais exposta são para os best-sellers, ou para os candidatos a best-sellers.

Assim, já ninguém estranha, nem se espanta, nem se inquieta, nem se indigna por se pôr, ou por se ver postos, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou Os Maias, de Eça de Queirós, rodeados, cercados, asfixiados, pelos livros escritos (ou, muitas vezes, apenas assinados) pela mais aclamada apresentadora de programas de televisão ou pelo mais rotineiro pivô de telejornal.

Está bem o que acaba bem, dizia o velho William Shakespeare, sem pensar que, no nosso tempo, estar bem e acabar bem é acabar por deixar o dinheiro na caixa onde se paga, comprando livros de uma mediocridade humilhante, mas que, não raro, para quem os compra, são, por indução do ambiente mediático-cultural, tidos por equivalentes, ou considerados mesmo superiores, à Ilíada ou à Odisseia, de Homero, que esses leitores nunca leram, nem lerão.

Esta mistificação premeditada, este investimento programado na confusão de valores e de níveis, tem consequências imparáveis em toda a «cadeia do negócio livreiro»: as grandes livrarias expõem o que se vende muito, as grandes editoras editam o que as livrarias expõem, muitos autores escrevem para que as editoras editem e as livrarias exponham, os grandes jornais falam daquilo que se expõe muito, que se edita muito e que se vende muito.

Não é preciso citar George Steiner e os seus alertas para a barbárie da ignorância, ou Umberto Eco e os seus alarmes perante a imbecilidade caudalosa das redes sociais, para termos consciência do mundo que estamos a construir e das consequências disso em todos os planos: desde o populismo como protótipo político vitorioso e caldo de cultura invasor até à ascensão europeia da extrema-direita e à intolerância narcísica e chauvinista, passando pelo desprezo pelo saber não imediatamente rentável, utilitário ou, pelo menos, lúdico.

Não se trata aqui de erguer, como uma lança alta, um implacável moralismo de leituras, brandindo um puritano código ético para os leitores. Não se trata de compor uma espécie de outro Index Expurgatorius ou Index Librorum Prohibitorum da mediocridade e da vulgaridade, censório, proibitivo e morigerador, a fazer lembrar o que a Igreja Católica impôs desde o século XVI, mesmo antes, mas sobretudo depois, do Concílio de Trento, e que durou em toda a sua imperiosa plenitude até ao pontificado do Papa Paulo VI, que o aboliu apenas em 1966, restando ainda, em matéria de livros, alguns mecanismos de direcção moral e religiosa que parcialmente o substituíram e que volta e meia se exercem.

Nesta secular lista negra (é daqui que vem a famosa expressão), estiveram ao longo dos séculos, entre muitos outros, obras de Galileu, Copérnico, Giordano Bruno, Maquiavel, Erasmo, Kepler, Espinosa, Locke, Diderot, Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Hume, Kant. Ou de Casanova, Sade, Dumas, Defoe, Victor Hugo, Zola, Stendhal, Flaubert, Baudelaire, Anatole France, Balzac, Renan. Ou, já no século xx, de Sartre, Gide, Graham Green, Moravia, Kazantzakis, Simone de Beauvoir.

De facto, não se trata aqui de, em nome da protecção da qualidade cultural, propor um vigilante moralismo dirigista de leitura. Cada qual lê o que quer e disso assume a responsabilidade (ou a irresponsabilidade) e a consequência (ou a inconsequência).

Trata-se, isso sim, de termos consciência da natureza determinística e condi- cionadora do actual fenómeno editorial e livreiro, do funcionamento perverso do sistema que o instituiu e do alcance inimaginável e nocivo dos seus mecanismos, dispositivos, braços e afluentes. O êxito de vendas e a consagração da mediocridade patrocinam-se mutuamente e fundam uma sinonímia indecorosa e não raro vitoriosa.

É claro que há excepções, mas essas são a breve interrupção da longa e avassaladora regra. Ao falar de excepções, não se pode deixar de referir as livrarias, as editoras, os jornais, as revistas, os autores e os críticos que resistem, persistem e caminham contra o vento venenoso que tudo quer varrer. Estas heróicas livrarias e editoras são muitas vezes pequenas e os corajosos autores, jornalistas e críticos são quase sempre poucos — e falarmos desta escassez já é apontar o dedo, identificando com esse gesto o sintoma de uma doença epidémica.

O livro e os livros, os livros dentro do livro, os livros acerca do livro, os livros que falam do livro. Se existiu, no nosso tempo sem tempo para ter tempo, um escritor que, com lucidez e lentidão, escreveu sobre o livro as palavras que o dizem, desdizendo-o, ou que o tornam presente, ausentando-o, o nome por que chamamos esse escritor é o de Maurice Blanchot.

A um dos seus livros sobre o livro e a literatura deu o título O Livro por Vir, e esse nome poderia ser o mote maior no qual o «Assunto» desta edição da Electra se origina e a meta móvel para onde se dirige.

A partir de um ponto invisível num espaço vazio, Blanchot desenhou as linhas sinuosas e subtis de um pensamento que foge da sua saturação, mostrando os signos de um saber apaixonado e ansioso que não procura a sua absolvição.

Este escritor, quase sem outro rosto reconhecido que não seja o das suas palavras de fogo frio, fala-nos de Rousseau, de Joseph Joubert, de Stéphane Mallarmé, de Marcel Proust, de Antonin Artaud, de Paul Claudel, de Hermann Broch, de Robert Musil, de Henry James, de Virginia Woolf, de Hermann Hesse, de Franz Kafka, de André Gide, de André Malraux, de Samuel Beckett, de Jorge Luis Borges.

O que sobre esses grandes autores escreveu faz uma pontaria tão afinada a um alvo, que dá à seta atirada um movimento imprevisto e impetuoso. Segundo ele:

A experiência que é a literatura é uma experiência total, uma questão que não suporta limites, não consente ser estabilizada ou reduzida a, por exemplo, uma questão de linguagem (a não ser que esse ponto de vista baste para abalar tudo). É a paixão de se questionar a si própria, e obriga aquele a quem atrai a colocar-se inteiramente nessa questão.

fragonard

Jean-Honoré Fragonard, La liseuse [A leitora], 1772 © Fotografia: National Gallery of Art, Washington, D. C.

 

Para Maurice Blanchot, o destino do livro e o destino da literatura são inseparáveis, tornando-se, um para o outro, uma intimidade e um acosso, um assédio, um ciúme e até uma ameaça.

Publicado em 1959, O Livro por Vir olhou o livro e a sua situação com uns olhos que viam o futuro no presente. Afirma-se nele:

Que livros, escritos e linguagem estejam destinados a metamorfoses a que os nossos hábitos começam a abrir-se, sem nos darmos conta, mas a que as nossas tradições ainda se recusam; que as bibliotecas nos impressionem pela sua aparência de outro mundo, como se de repente, com um misto de curiosidade, espanto e respeito, ali descobríssemos, após uma viagem cósmica, vestígios de outro planeta mais antigo, petrificado na eternidade do silêncio — só não nos aperceberíamos disto se estivéssemos muito pouco familiarizados connosco próprios. Ler, escrever: não duvidamos que estas palavras são chamadas a desempenhar no nosso espírito um papel muito diferente daquele que ainda no princípio do século desempenhavam: é algo de evidente, para que qualquer posto de rádio ou qualquer ecrã nos chama a atenção, e mais ainda este rumor à nossa volta, este zumbido anónimo e contínuo em nós, esta maravilhosa palavra inesperada, ágil, incansável, que a toda a hora nos dota de um saber instantâneo, universal, e faz de nós a pura passagem de um movimento onde cada um de nós sempre já se trocou, antecipadamente, por todos os outros.

Alains Resnais

Alain Resnais, Toda a memória do mundo, 1956

 

Edward Hopper

Edward Hopper, Hotel Lobby [Lobby de hotel], 1943 © Fotografia: herdeiros de Josephine N. Hopper / Indianapolis Museum of Art, Newfields, William Ray Adams Memorial Collection / Artists Rights Society (ARS), Nova Iorque

 

Com a misteriosa sabedoria que lhe pertence, mais densa e determinante do que um simples saber, Blanchot fez da sua invisibilidade física (nunca aparecia em público e há muito, muito poucas imagens dele) uma aguda e prodigiosa vidência intelectual — literária, filosófica, cultural, antropológica.

A sua meditação sobre a situação e o estatuto da literatura e do livro, com a possibilidade e o risco do seu desaparecimento, mesmo que não seja físico e objectual, é uma chave para nos lermos a nós próprios e para lermos o mundo e o tempo do nosso presente ameaçado pelo futuro. Na sua obra, Marshall McLuhan agudizou a profecia desta mudança global.

Nos dias que correm e nos assolam como uma tempestade que se sucede incessantemente a si mesma, é como se o livro, com as suas estabilidades e sobressaltos, fosse um íman que atrai tudo o que acontece: as nossas invenções técnicas, prodígios tecnológicos, ousadias estéticas, programas ideológicos, aventuras individuais e empreendimentos colectivos. Que captura as nossas ilusões, ingenuidades, delírios, devaneios, alucinações, fantasmas e prometidas ou falsificadas utopias. Que alicia os nossos impasses, perplexidades, angústias, insatisfações, desorientações e distopias. Que capta os nossos enganos, equívocos, falhas, flagelos, fracassos, fanatismos, castigos e crimes.

Falar hoje do livro, da sua condição e do seu destino, da sua actualidade e do seu porvir, da memória do que foi e da probabilidade do que será, é falarmos do que somos, lançando sobre isso uma luz que não se consegue separar das trevas que a envolvem.

Que efeitos, mutações, pressões, imposições, condicionamentos e controlos vão exercer sobre o livro, sobre a criação cultural, sobre a transmissão de conhecimentos e sobre a indústria editorial os avanços tecnológicos, as mudanças educativas, as alterações cognitivas, as transformações relacionais, as acelerações comunicacionais, as compulsões comportamentais e as revoluções nos domínios das neurociências, da Inteligência Artificial ou das redes sociais?

Que consequências vão ter sobre o livro — e sobre a sua natureza e a sua difusão — as desordens geopolíticas, as desregulações estatais, as intimidações ideológicas, as libertinagens políticas, financeiras e económicas, a nova lei da selva, os ameaçadores códigos de supremacia da desigualdade?

Esta edição da Electra, com o seu dossier sobre «O Livro», propõe um exame e uma análise crítica informada sobre uma indústria e um comércio, uma produção e uma difusão, uma forma e um conteúdo, um suporte de conservação e um instrumento de transmissão, um objecto material e uma entidade cultural, económica e social, que tem sido central na história e na civilização universal.

Oiçamos o magistral pregador e escritor do século XVII Padre António Vieira, a quem Fernando Pessoa chamou «imperador da língua portuguesa»:

O livro é um mudo que fala; um surdo que responde; um cego que guia; um morto que vive; e não tendo acção em si mesmo, move os ânimos, e causa grandes efeitos.

O grande romancista Eça de Queirós afirmou:

A arte é tudo — tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leónidas ou Péricles não bastariam para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos: foi-lhe preciso ter Aristófanes e Ésquilo. Tudo é efémero e oco nas sociedades — sobretudo o que nelas mais nos deslumbra. Podes-me tu dizer quem foram, no tempo de Shakespeare, os grandes banqueiros e as formosas mulheres? Onde estão os sacos de ouro deles e o rolar do seu luxo? Onde estão os olhos claros delas? Onde estão as rosas de York que floriram então? Mas Shakespeare está realmente tão vivo como quando, no estreito tablado do Globe, ele dependurava a lanterna que devia ser a Lua, triste e amorosamente invocada, alumiando o jardim dos Capuletos. Está vivo de uma vida melhor, porque o seu espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne!

Defendeu Oscar Wilde:

Dizer que um livro é moral ou imoral não tem sentido. Um livro é bem ou mal escrito e é tudo.

Lembrou Jorge Luis Borges:

De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões da sua vista; o telefone é extensão da voz; temos também o arado e a espada, extensões do braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.

Declarou George Steiner:

Os livros são a nossa palavra-passe para nos tornarmos mais do que somos. A sua capacidade de produzir esta transcendência provocou discussões, interpretações e desconstruções sem fim. O encontro com o livro, como com o homem ou a mulher que mudará a nossa vida, muitas vezes num instante de reconhecimento que ignoramos, pode acontecer por acaso. O texto que nos converterá a uma fé, que nos ligará a uma ideologia, que dará à nossa existência uma finalidade e um critério, poderá esperar-nos numa banca de livros em segunda mão, nos livros gastos, nos saldos. Pode estar, empoeirado e esquecido, numa prateleira ao lado do volume que procuramos.

Lagerfeld

A livraria 7L em Paris, fundada por Karl Lagerfeld em 1999 © Cédrine Scheidig

 

Não fazemos estas citações, e muitas mais poderiam ser trazidas aqui, para dar vigor, sentido e grandiloquência a uma mitologia — a mitologia do livro — que não precisa de ser acrescentada daquilo que já tem em abundância.

Fazemo-las para pôr em maior evidência o contraste entre dois mundos: um mundo no qual o livro era um insigne arquétipo cultural, um insubstituível paradigma civilizacional, um altíssimo símbolo espiritual (as religiões do Livro), um objecto de culto, adoração e prestígio, e aquele outro mundo, a que chamamos contemporâneo, que operou sobre ele uma brutal e grosseira mercantilização, submetendo-o a uma cega compulsão, composta de voracidade, vulgaridade, futilidade, insignificância e desqualificação.

Extensão da memória e da imaginação, filho da obscuridade e do silêncio, produto do trabalho e do divertimento, lugar de continuidade e de ruptura, testemunho do idêntico e do diferente, penhor da liberdade e da submissão, móbil de fogueiras acesas e motivo de censuras e perseguições, mármore ou bronze da estátua da glória e carvão da caricatura do descrédito e da irrisão, rosto e espelho do rosto, Deus e ausência dos deuses, o livro tem transportado consigo, ao longo dos séculos, a substância do tempo, a vertigem da vida e um além mais ágil e mais audaz do que o aquém.

Desde quando? Até quando? Como? Porquê?

Pensar o livro (esse ser de papel), falar do livro (esse ser de linguagem), escrever sobre o livro (esse ser de comércio) é, afinal, não desistirmos de assumir uma responsabilidade mais alta do que a desatenção ou a indiferença.