Reunidos aí, quer pela mão direita do destino, seja pela mão esquerda do acaso, aqueles imensos livros compõem uma geografia, onde o longe e o perto se perseguem, e uma história, que vai e vem das eras mais remotas às idades mais recentes.
Entramos nesses tempos e nesses espaços, que criam um ambiente ao mesmo tempo sossegado e intenso. Com o que está disposto nas largas estantes e o que está deposto no longo chão forma-se um labirinto de obras e de títulos por onde andamos numa lúcida alucinação em que a consciência toma conta de si própria para, como quer a fenomenologia, se tornar consciência do mundo.
Ao olharmos a sequência das lombadas e das capas, a propagação das palavras e das imagens, a insistência dos algarismos e dos sinais, a proliferação das matrizes, dos tipos e dos corpos tipográficos, a diferença de papéis, dimensões, formatos e cores, a variedade de impressões, encadernações e brochuras, sentimos a gravitação material de um universo em expansão incessante e em crescimento descontrolado e conquistador.
Ao vermos a acumulação de volumes, a multiplicidade de disciplinas, a multiplicação de géneros, a abundância de autores, a sucessão de eras e de épocas, a diversidade de estilos e de correntes, a pluralidade de línguas e de linguagens, experimentamos um susto arrepiado semelhante àquele que Blaise Pascal confessava sentir perante o silêncio eterno dos espaços siderais infinitos.
Andamos por ali e estamos em muitos tempos e em muitos mundos, porque estamos no interior de um tempo feito de outros tempos e dentro de um mundo cujo mapa é meticulosamente desenhado pelas viagens vindas até nós de outros mundos.
Estamos ali e o nosso tempo e o nosso mundo são como as cores de um Pantone composto de profusão e de possibilidades, de variedades e de variações, de contrastes e de aproximações, de escalas cromáticas e de gradações tonais.
Num alfarrabista convivem o velho e o novo, a quantidade e a qualidade, o grande e o pequeno, o mau e o bom, o génio e a mediocridade, a segurança e o perigo, a meditação e o tumulto, a aliança e o conflito, a guerra e o armistício, o amor e o ódio, a realidade e a imaginação, a pressa e o vagar, a expiração e a inspiração, o conhecimento e o desconhecido, o sublime e o vulgar, a salvação e a perdição.
Cada loja de alfarrabista é um atlas de lugares, um palco de personagens, um termómetro de temperaturas, um arquivo de provas, um laboratório de experiências, um inventário de documentos, um registo de nomes, um museu de monumentos, um catálogo de obras, um acervo de acontecimentos, um arrolamento de modos e de modas, um cadastro de prodígios.
É um caderno de exercícios de atenção, um salão de tentações, um jardim de delícias, um cemitério de túmulos, um campo de minas, uma escola de saberes, um consultório de decifrações, uma colecção de vestígios, um altar de auras, um gabinete de curiosidades, um domínio de demonstrações, um parque de atracções, uma tenda de sorte e de azar.
Agora, é num edifício feio e amplo aonde vamos mesmo sem querermos ir, e lá encontramos uma daquelas livrarias a que as escadas rolantes ou os elevadores velozes nos levam com um movimento repetitivo e mecânico que nos tira a fadiga e nos dá o tédio em troca.
Entramos e entramos num certame de marketing, numa feira de vaidades, num espectáculo estagnado, num entreposto comercial, num mercado de géneros, numa Disneylândia tecnológica, gráfica e tipográfica.
Em vez de encontrarmos os livros que desejamos encontrar, encontramos ecrãs, equipamentos, electrodomésticos, utensílios, aparelhos, dispositivos, máquinas, apetrechos, acessórios, gadgets.
Antes de encontrarmos os livros a que a sabedoria dos séculos deu critério, crédito e confiança, encontramos, com profusão e publicidade, as novidades fúteis e efémeras, os livros fáceis e utilitários: de entretenimento, auto-ajuda, bem-estar, literatura light (que contradição nos termos!). Ou, então, tratados de esoterismo barato, medicinas alternativas, alimentação saudável e dietas eficazes, guias para se ser jovem para sempre, manuais para se ter êxito na vida e para ganhar dinheiro rapidamente, prontuários para se tornar um génio, obras que ensinam a ser líder, a competir para vencer e a gostar de si próprio, compilações de piadas sem piada, romances de não-escritores, novelas «românticas» pueris, histórias de erotismo porno-imaturas, biografias e romances históricos sem fundamento histórico, panfletos de narcisismo político e propaganda pessoal, figuras, figurinhas, figurões e figuronas da televisão e influencers das redes sociais a contar a vidinha e a dar instruções e conselhos para cozinhar bem, vestir bem, maquilhar bem, dormir bem, viajar bem, amar bem, ou a prometerem ensinar o que não sabem.
Nestas plataformas de mercadorias, cada metro quadrado é dado e retirado, concedido ou negado, a cada «produto», de acordo com o volume de vendas e a rentabilidade facturada. Se a poesia não vende, não há lugar para a poesia. Se o ensaio vende pouco, dá-se pouco espaço ao ensaio. Se o romance que não é romance vende muito, investe-se nele, dando-se-lhe a primazia do espaço e o chamariz dos cartazes e dos ecrãs.
São os números das vendas que comandam todos os outros números e que mandam na estratégia e na logística do negócio. Um livro sobre o ócio é, antes de mais, um negócio de um livro sobre o ócio.
Para mais, a tendência editorial monopolista completa-se e reforça-se com a extensão do seu domínio e controlo de todas as acções e de todas as fases do longo caminho que vai do autor ao leitor.
Aqui não há imprevistos, nem improvisações, nem surpresas. O resultado assume a fatalidade do que tem de ser: o espaço mais vasto, o centro mais central, o escaparate mais visível, a bancada mais notória, a montra mais exposta são para os best-sellers, ou para os candidatos a best-sellers.
Assim, já ninguém estranha, nem se espanta, nem se inquieta, nem se indigna por se pôr, ou por se ver postos, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou Os Maias, de Eça de Queirós, rodeados, cercados, asfixiados, pelos livros escritos (ou, muitas vezes, apenas assinados) pela mais aclamada apresentadora de programas de televisão ou pelo mais rotineiro pivô de telejornal.
Está bem o que acaba bem, dizia o velho William Shakespeare, sem pensar que, no nosso tempo, estar bem e acabar bem é acabar por deixar o dinheiro na caixa onde se paga, comprando livros de uma mediocridade humilhante, mas que, não raro, para quem os compra, são, por indução do ambiente mediático-cultural, tidos por equivalentes, ou considerados mesmo superiores, à Ilíada ou à Odisseia, de Homero, que esses leitores nunca leram, nem lerão.
Esta mistificação premeditada, este investimento programado na confusão de valores e de níveis, tem consequências imparáveis em toda a «cadeia do negócio livreiro»: as grandes livrarias expõem o que se vende muito, as grandes editoras editam o que as livrarias expõem, muitos autores escrevem para que as editoras editem e as livrarias exponham, os grandes jornais falam daquilo que se expõe muito, que se edita muito e que se vende muito.
Não é preciso citar George Steiner e os seus alertas para a barbárie da ignorância, ou Umberto Eco e os seus alarmes perante a imbecilidade caudalosa das redes sociais, para termos consciência do mundo que estamos a construir e das consequências disso em todos os planos: desde o populismo como protótipo político vitorioso e caldo de cultura invasor até à ascensão europeia da extrema-direita e à intolerância narcísica e chauvinista, passando pelo desprezo pelo saber não imediatamente rentável, utilitário ou, pelo menos, lúdico.
Não se trata aqui de erguer, como uma lança alta, um implacável moralismo de leituras, brandindo um puritano código ético para os leitores. Não se trata de compor uma espécie de outro Index Expurgatorius ou Index Librorum Prohibitorum da mediocridade e da vulgaridade, censório, proibitivo e morigerador, a fazer lembrar o que a Igreja Católica impôs desde o século XVI, mesmo antes, mas sobretudo depois, do Concílio de Trento, e que durou em toda a sua imperiosa plenitude até ao pontificado do Papa Paulo VI, que o aboliu apenas em 1966, restando ainda, em matéria de livros, alguns mecanismos de direcção moral e religiosa que parcialmente o substituíram e que volta e meia se exercem.
Nesta secular lista negra (é daqui que vem a famosa expressão), estiveram ao longo dos séculos, entre muitos outros, obras de Galileu, Copérnico, Giordano Bruno, Maquiavel, Erasmo, Kepler, Espinosa, Locke, Diderot, Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Hume, Kant. Ou de Casanova, Sade, Dumas, Defoe, Victor Hugo, Zola, Stendhal, Flaubert, Baudelaire, Anatole France, Balzac, Renan. Ou, já no século xx, de Sartre, Gide, Graham Green, Moravia, Kazantzakis, Simone de Beauvoir.
De facto, não se trata aqui de, em nome da protecção da qualidade cultural, propor um vigilante moralismo dirigista de leitura. Cada qual lê o que quer e disso assume a responsabilidade (ou a irresponsabilidade) e a consequência (ou a inconsequência).
Trata-se, isso sim, de termos consciência da natureza determinística e condi- cionadora do actual fenómeno editorial e livreiro, do funcionamento perverso do sistema que o instituiu e do alcance inimaginável e nocivo dos seus mecanismos, dispositivos, braços e afluentes. O êxito de vendas e a consagração da mediocridade patrocinam-se mutuamente e fundam uma sinonímia indecorosa e não raro vitoriosa.
É claro que há excepções, mas essas são a breve interrupção da longa e avassaladora regra. Ao falar de excepções, não se pode deixar de referir as livrarias, as editoras, os jornais, as revistas, os autores e os críticos que resistem, persistem e caminham contra o vento venenoso que tudo quer varrer. Estas heróicas livrarias e editoras são muitas vezes pequenas e os corajosos autores, jornalistas e críticos são quase sempre poucos — e falarmos desta escassez já é apontar o dedo, identificando com esse gesto o sintoma de uma doença epidémica.
O livro e os livros, os livros dentro do livro, os livros acerca do livro, os livros que falam do livro. Se existiu, no nosso tempo sem tempo para ter tempo, um escritor que, com lucidez e lentidão, escreveu sobre o livro as palavras que o dizem, desdizendo-o, ou que o tornam presente, ausentando-o, o nome por que chamamos esse escritor é o de Maurice Blanchot.
A um dos seus livros sobre o livro e a literatura deu o título O Livro por Vir, e esse nome poderia ser o mote maior no qual o «Assunto» desta edição da Electra se origina e a meta móvel para onde se dirige.
A partir de um ponto invisível num espaço vazio, Blanchot desenhou as linhas sinuosas e subtis de um pensamento que foge da sua saturação, mostrando os signos de um saber apaixonado e ansioso que não procura a sua absolvição.
Este escritor, quase sem outro rosto reconhecido que não seja o das suas palavras de fogo frio, fala-nos de Rousseau, de Joseph Joubert, de Stéphane Mallarmé, de Marcel Proust, de Antonin Artaud, de Paul Claudel, de Hermann Broch, de Robert Musil, de Henry James, de Virginia Woolf, de Hermann Hesse, de Franz Kafka, de André Gide, de André Malraux, de Samuel Beckett, de Jorge Luis Borges.
O que sobre esses grandes autores escreveu faz uma pontaria tão afinada a um alvo, que dá à seta atirada um movimento imprevisto e impetuoso. Segundo ele:
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