Portfolio
Miriam Cahn: A fotografia do mundo
Sandrine Djerouet

Com exposições nos mais prestigiados lugares da arte contemporânea e considerada uma das artistas mais activas e influentes da actualidade, Miriam Cahn é a criadora de uma vasta obra (pintura, desenho, fotografia, escultura, performance, instalação), na qual as grandes questões e causas do nosso tempo (feminismo, ecologia, pacifismo, guerras, refugiados, populações vulneráveis) ganham forma e figura com uma intensidade e uma força que, não raro, alcançam o duro vigor do combate e do protesto.
Tendo o corpo (físico e mental), o seu e o dos outros, no centro, esta obra, radical e singular, desafia a estabilidade e interpela-nos quando mostra, nas suas fulgurações e nas suas cores, a nudez altiva da violência e do desejo. O espaço, com a arquitectura que o torna abrigo, esconderijo ou passagem, está também presente com a afirmação de um pensamento que se comunica visualmente.
Este portfólio, preparado pela artista suíça para a Electra, é representativo dos seus trabalhos sobre papel dos últimos trinta anos. A primeira exposição individual de Miriam Cahn em Portugal será apresentada no MAAT (Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, Lisboa) a partir de Junho deste ano.

A primeira vez que vi as fotografias de Miriam Cahn foi na sua exposição na galeria Jocelyn Wolff, em 2009. Nessa altura estava ainda a entrar no universo da artista, que mal conhecia, e fiquei surpreendida por descobrir fotografias de uma pintora. Foi apenas mais tarde que comecei a relacioná-las com o seu restante trabalho. Os retratos recordavam-me as pinturas de pequeno formato de Miriam, nas quais surgiam olhares muito intensos, como se estivessem hipnotizados ou a hipnotizar alguém. Ao compilar o inventário da galeria, descobri que os temas dessas fotografias variavam enormemente: retratos–rostos, animais, arquitecturas, estranhas formas retiradas de esculturas ou do trabalho da artista… Os suportes diferiam também: as fotografias antigas reproduzidas em alguns catálogos eram analógicas, enquanto as mais recentes eram impressões a jacto de tinta produzidas no atelier da artista, numa impressora de escritório. Algumas delas figuram no seu trabalho sem qualquer tipo de intervenção, enquanto noutras desenhou directamente com lápis de grafite ou de cor, tornando-se então quase impossível distinguir a imagem original. É a nova textura do papel que interessa a Miriam. Para compreender devidamente essas diferenças, mantive ao longo dos anos um diálogo constante com a artista, que conservou todas as suas máquinas fotográficas, apesar da sua progressiva passagem à obsolescência.

Miriam Cahn começou a utilizar a fotografia analógica no final dos anos 70. Graças a uma máquina Reflex Canon, imortalizou os desenhos «de rua» que realizou em Basileia e no túnel de l’Alma, em Paris. Essas fotografias são, aliás, os únicos vestígios desses desenhos, sendo simultaneamente obra e documento, testemunho e memória, de um gesto e de uma presença no espaço público. De seguida, Cahn começa a fotografar pessoas que encontra, mas muito rapidamente se sente desconfortável com tal abordagem. Trata-se de um gesto demasiado íntimo para a artista, que decide então fotografar «pessoas na televisão». Na sua prática do desenho, Cahn utiliza o título Was Mich Anschaut, ou «o que me olha», exprimindo a intensidade de um olhar que pode, por vezes, ser intrusivo.

A artista começa a trabalhar num atelier na região da Engadina, perto de Saint-Moritz. Estamos então nos anos 90 e Miriam, que normalmente utilizava o preto e branco, vai começar a interessar-se pela cor. As longas caminhadas diárias, acompanhada de uma máquina Rollei, tornam-se uma nova fonte visual, com temas extraídos do quotidiano: um dos seus primeiros espaços de atelier na Engadina, uma cabra, flores, paisagens, e as suas pinturas ou desenhos, integram essa colecção de imagens, que, como uma biblioteca, constitui uma narração elíptica das deslocações da artista. Nunca podemos ter a certeza do local onde essas fotografias foram tiradas, interessando-se o olhar de Cahn tanto pela arquitectura das cidades onde expõe, como pelas personagens históricas ou anónimas. Muitas fotografias foram tiradas em Sarajevo, nos anos 90, durante o período em que a artista aí permaneceu para uma exposição no Obala Center. É também nessa altura que começa a constituir «clusters» — conjuntos mistos —, nos quais inclui as suas fotografias, fazendo-as dialogar com pinturas e desenhos.

Artista do seu tempo, Cahn interessa-se desde logo pelas novas técnicas relacionadas com o aparecimento da fotografia digital. Começa por utilizar uma Canon Ixus, antes de a substituir por um iPhone ou pelo iPad, e as fotografias são impressas a jacto de tinta na sua impressora de escritório, incorporando elementos do acaso e do aleatório. Gosta também de imprimir com «os restos de tinta» da impressora. O resultado é, por vezes, desconcertante: linhas podem sobrepor-se à imagem quando o tinteiro acaba, ou as cores adquirem um contraste surpreendente, quase irreal. A fotografia ecoa então a sua prática do desenho, quando a artista pinta com lápis de cor, utilizando tons inesperados: numa das suas fotografias, o rosto, impresso a preto-e-branco, é realçado com uma cor vermelha carmim. Esse rosto, à primeira vista sedutor e com traços finos, contrasta de modo flagrante com o vermelho dos seus lábios. A leitura por Cahn de Hannah Arendt levou-a a reconsiderar a ideia de beleza, um conceito subjectivo que não se reflecte na personalidade interior, como no seu retrato de Alois Brunner.

Do analógico para o digital, a forma de olhar o motivo muda igualmente: enquanto a fotografia analógica exigia regulações, um ponto de vista e uma iluminação precisa, sendo o limite de trinta e seis imagens imposto pelo comprimento do rolo de película, a imagem digital torna-se um instantâneo, um registo do momento, uma forma mais espontânea de olhar à sua volta. Esta relação com o tempo acelerado confere uma outra liberdade à artista, que pode agora realizar um maior número de fotografias, dada a possibilidade de ver, logo de seguida, o «resultado». Miriam não retrabalha as suas fotografias digitais no computador, não procura embelezá-las, nem corrigir pormenores. São fotografias «cruas», que testemunham a beleza de um instante.

A sua fotografia é posta em movimento a partir de 2013, quando a artista realiza uma primeira série de diaporamas constituídos por imagens de esculturas e/ou do seu próprio corpo, destinadas a transformar-se e a desaparecer a favor das esculturas. Pouco a pouco, começa também a integrar as variações existentes no seu próprio trabalho, com a série «Serielle denken», ou «o pensamento serial», termo que remete para o Renascimento, período no qual surgiu a noção de série. Nesta última série de diaporamas, mostra pela primeira vez as transformações sucessivas que podem conhecer algumas das suas pinturas ou desenhos.

Cahn integra a experimentação no seu trabalho fotográfico, reutilizando por vezes certas imagens individuais, que inclui em conjuntos nos quais podem surgir transformadas através do lápis ou sem qualquer tipo de intervenção. Digitalizou igualmente todas as suas fotografias analógicas, que retornam à vida no interior desses célebres «clusters».

Fico sempre encantada quando recebo um email de Miriam Cahn no qual a artista anexa uma fotografia tirada alguns dias antes, sem qualquer retoque, partilhando as cores vibrantes dessa paisagem de Maloja, como num diário fotográfico.

miriam cahn