Registo
A «grande substituição» do fascismo
Christian Salmon

O centenário da edição de Mein Kampf, de Adolf Hitler, suscita uma reflexão de Christian Salmon — ensaísta, romancista e autor de uma importante bibliografia na área dos estudo políticos (L’Empire du discrédit é o seu último livro) — sobre a matriz política do que está a emergir com o aspecto de um neofascismo.

Em 2016, enquanto Donald Trump era eleito para a Casa Branca, o livro de Adolf Hitler, Mein Kampf, caía em domínio público, desencadeando uma onda de novas traduções por todo o mundo. O que pensar desta concomitância entre dois fenómenos de naturezas tão diferentes: um editorial e o outro político? Como analisar esta coincidência entre a difusão mundial do livro maldito de Hitler e o ressurgimento das ideologias de extrema-direita no mundo (o eugenismo, o supremacismo, o racismo)? Trata-se de uma combinação fortuita de circunstâncias à qual não se deve dar mais importância do que a que tem, ou devemos ver nesta coincidência histórica uma viragem ideológica, o acto inaugural de um novo ciclo político que se tem vindo a alastrar desde 2016: Jair Bolsonaro no Brasil, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Boris Johnson no Reino Unido, Matteo Salvini e Beppe Grillo em Itália, Jimmy Morales na Guatemala, Viktor Orbán na Hungria, Javier Milei na Argentina…

O termo «populista» é frequentemente usado para designar esta vaga de líderes, sob pena de banalizar uma noção histórico-política já de si razoavelmente abrangente, que vai desde os narodniks [populistas] russos do final do século XIX até aos grandes líderes latino-americanos, como o argentino Juan Perón ou o brasileiro Getúlio Vargas. Existem profundas divergências ideológicas entre estas novas figuras políticas, algumas das quais podem ser descritas como neofascistas, como Bolsonaro ou Salvini, ao passo que outras estão mais próximas do liberalismo autoritário ou de um nacionalismo com laivos de xenofobia, como Boris Johnson ou Viktor Orbán. Este último declara-se «iliberal», um neologismo aplicado a vários outros regimes da Europa Central (Polónia ou Eslováquia), bem como à Índia de Narendra Modi ou à Turquia de Recep Erdoğan. Quanto a Javier Milei, que chegou ao poder em 2023, é um libertário que inspira muitos líderes nos EUA e na Europa, como o bilionário americano Elon Musk, que integra a nova administração Trump e que acaba de dar o seu apoio à AfD, o partido de extrema-direita alemão… Serão todos estes líderes fascistas? Poderão os seus milhões de eleitores ser comparados com as hordas nazis que acompanharam a ascensão do nacional-socialismo nos anos 1920?

O que significa ser fascista nos dias de hoje? A questão não é despicienda. Reemergiu nos últimos dias da campanha eleitoral americana de 2024, relançada pelas palavras de John Kelly, ex-chefe de gabinete de Donald Trump na Casa Branca, que descreveu o antigo patrão como «um líder ditatorial, [defensor de] uma autocracia centralizada, militarismo, supressão forçada da oposição e [crente] numa hierarquia social natural». Uma série de características citadas pelos meios de comunicação, lembrando que as declarações de Trump que acusavam «os migrantes de importarem “maus genes” e de envenenarem o sangue do nosso país» derivam de uma retórica que se inscreve na longa história do eugenismo nos EUA.

"A análise de Aimé Césaire ajuda-nos a compreender a verdadeira actualidade do fascismo que está a ressurgir sob a forma da Grande Substituição."

Num artigo publicado em 2019 na New York Review of Books intitulado «Imigração americana, um século de racismo», a académica americana Sarah Churchwell fez a arqueologia deste eugenismo americano. A obsessão com o desaparecimento da raça branca inspirou não só os fascismos europeus do século XX, como, antes disso, o supremacismo branco nos EUA. Podem mesmo encontrar-se vestígios dela no célebre romance de Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby, publicado em 1925, lembra a académica norte-americana. O cinema revestiu este romance de imagens luxuriantes, esquecendo-se de que pintava o quadro trágico de um mundo em vias de desaparecer. Todos os ingredientes da crise de 1929 estão presentes. O dinheiro soberano. As fortunas relâmpago. O champagne que jorra nas festas organizadas pelo bilionário Gatsby, nas quais os ricos nova-iorquinos se divertem sem perceberem que estão à deriva. Recordemos o enredo. Numa noite de Verão, Nick, o narrador, chega de carro à casa do casal Tom e Daisy Buchanan. Daisy é sua prima em segundo grau e Tom, um colega de escola. Durante o jantar, Tom explode de raiva sem razão aparente:

«A civilização está à beira do precipício!», exclama. «Estou terrivelmente pessimista em relação ao que está a acontecer. Leste The Rise of Coloured Empires, de um tal Goddard? É um livro excelente. Toda a gente o devia ter lido. A ideia é que a raça branca deve estar atenta, ou acabará por ser engolida. Uma tese científica, fundada em provas irrefutáveis. […] Somos a raça dominante. O nosso dever é impedir que outras raças tomem o poder […]. Tudo o que constitui a civilização foi inventado por nós. As ciências, digamos, as artes e o resto. Compreendes?»

Efígie de Mussolini no Vale de Adwa, Etiópia, 1936

Efígie de Mussolini no Vale de Adwa, Etiópia, 1936 © Fotografia: De Agostini Picture Library

 

Tilman Riemenschneider, retábulo de Nossa Senhora, Creglingen, c. 1505–1510 (detalhe)

Tilman Riemenschneider, retábulo de Nossa Senhora, Creglingen, c. 1505–1510 (detalhe) © Fotografia: Daniel Leclercq

 

Albrecht Dürer, Retrato de Oswolt Krel, 1499

Albrecht Dürer, Retrato de Oswolt Krel, 1499 © Fotografia: Scala, Florença / bpk, Bildagentur für Kunst, Kultur und Geschichte, Berlim / Alte Pinakothek München / Bayerische Staatsgemäldesammlungen, Munique

 

Os argumentos de Tom Buchanan, lembra Sarah Churchwell, inspiram-se em dois best-sellers da Primeira Guerra Mundial: The Passing of the Great Race (1916), de Madison Grant, publicado pela mesma editora do romance de Fitzgerald, e The Rising Tide of Color Against White World-Supremacy (1920), de Lothrop Stoddard. Estas ideias eugenistas tinham-se generalizado nos anos 1920, em grande parte graças à legitimidade conferida pelas instituições culturais, nomeadamente, as editoras, as revistas populares e os académicos. Fitzgerald descobrira estas «ideias antiquadas» quando era estudante em Princeton, onde por vezes assistia a conferências sobre eugenismo. O termo «eugenismo» (do grego «bem-nascido») foi inventado em 1883 por um primo de Charles Darwin, Francis Galton, que tinha aplicado aos seres humanos as teorias da selecção natural de Darwin para o aperfeiçoamento da humanidade através da selecção. O «eugenismo positivo», como era conhecido, preconizava ideias progressistas de melhoria da existência humana pela selecção dos melhores — mas, regra geral, a sua implementação baseava-se num «eugenismo negativo», que reprimia violentamente aqueles que não tinham sido seleccionados. Isto incluía a esterilização forçada, adoptada em mais de trinta estados norte-americanos, e visava de forma desproporcional os cidadãos negros.

Grant e Stoddard limitavam-se a vestir as velhas ideias «eugenistas» com as novas roupagens do biologismo, mas as suas vozes tiveram um grande eco no mundo em ruínas dos anos 1920. Os livros de ambos foram um enorme sucesso. Inspiraram o Immigration Act de 1924, que fixou quotas de imigração aos vários países da Europa (e do mundo) e que contribuiu para reduzir a imigração em mais de 90%. Esta lei manteve-se em vigor durante quarenta anos, até ser revogada por Lyndon B. Johnson, em 1965. Em 2015, o senador Jeff Sessions, que foi procurador-geral dos EUA na administração Trump de 2017 a 2018, afirmou que a lei de 1924 tinha conseguido abrandar «consideravelmente» a imigração.

O livro de Madison Grant foi traduzido para alemão, e a ideia alemã da higiene racial inspirou-se nas suas teorias. É impossível negar a sua influência na ideologia nazi. Em The Nazi Connection (1924), Stefan Kühl demonstra claramente que os nazis tinham ido buscar as suas ideias eugenistas às teorias americanas, da mesma forma que utilizaram as leis americanas sobre a raça para legitimar as leis de Nuremberga de 1935. Hitler chegou mesmo a escrever uma carta a Madison Grant para o felicitar. Confidenciou-lhe que o seu livro The Passing of the Great Race se tornara a sua «bíblia»! Hitler escreveu Mein Kampf na prisão, em 1924−25, ou seja, oito anos depois da publicação do livro de Grant. Nos Julgamentos de Nuremberga, os advogados dos nazis foram ao ponto de citar The Passing of the Great Race como fonte de inspiração nazi para provar que os EUA também tinham cometido os crimes de que estavam agora a acusar os alemães.

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