Em 2016, enquanto Donald Trump era eleito para a Casa Branca, o livro de Adolf Hitler, Mein Kampf, caía em domínio público, desencadeando uma onda de novas traduções por todo o mundo. O que pensar desta concomitância entre dois fenómenos de naturezas tão diferentes: um editorial e o outro político? Como analisar esta coincidência entre a difusão mundial do livro maldito de Hitler e o ressurgimento das ideologias de extrema-direita no mundo (o eugenismo, o supremacismo, o racismo)? Trata-se de uma combinação fortuita de circunstâncias à qual não se deve dar mais importância do que a que tem, ou devemos ver nesta coincidência histórica uma viragem ideológica, o acto inaugural de um novo ciclo político que se tem vindo a alastrar desde 2016: Jair Bolsonaro no Brasil, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Boris Johnson no Reino Unido, Matteo Salvini e Beppe Grillo em Itália, Jimmy Morales na Guatemala, Viktor Orbán na Hungria, Javier Milei na Argentina…
O termo «populista» é frequentemente usado para designar esta vaga de líderes, sob pena de banalizar uma noção histórico-política já de si razoavelmente abrangente, que vai desde os narodniks [populistas] russos do final do século XIX até aos grandes líderes latino-americanos, como o argentino Juan Perón ou o brasileiro Getúlio Vargas. Existem profundas divergências ideológicas entre estas novas figuras políticas, algumas das quais podem ser descritas como neofascistas, como Bolsonaro ou Salvini, ao passo que outras estão mais próximas do liberalismo autoritário ou de um nacionalismo com laivos de xenofobia, como Boris Johnson ou Viktor Orbán. Este último declara-se «iliberal», um neologismo aplicado a vários outros regimes da Europa Central (Polónia ou Eslováquia), bem como à Índia de Narendra Modi ou à Turquia de Recep Erdoğan. Quanto a Javier Milei, que chegou ao poder em 2023, é um libertário que inspira muitos líderes nos EUA e na Europa, como o bilionário americano Elon Musk, que integra a nova administração Trump e que acaba de dar o seu apoio à AfD, o partido de extrema-direita alemão… Serão todos estes líderes fascistas? Poderão os seus milhões de eleitores ser comparados com as hordas nazis que acompanharam a ascensão do nacional-socialismo nos anos 1920?
O que significa ser fascista nos dias de hoje? A questão não é despicienda. Reemergiu nos últimos dias da campanha eleitoral americana de 2024, relançada pelas palavras de John Kelly, ex-chefe de gabinete de Donald Trump na Casa Branca, que descreveu o antigo patrão como «um líder ditatorial, [defensor de] uma autocracia centralizada, militarismo, supressão forçada da oposição e [crente] numa hierarquia social natural». Uma série de características citadas pelos meios de comunicação, lembrando que as declarações de Trump que acusavam «os migrantes de importarem “maus genes” e de envenenarem o sangue do nosso país» derivam de uma retórica que se inscreve na longa história do eugenismo nos EUA.
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