O carro pára na fronteira entre a Bósnia e a Sérvia e, do banco do passageiro, Emir Kusturica começa a cantar:
O seu nome gera admiração e controvérsia. Chama-se Emir Kusturica e foi um dos mais distinguidos, aclamados e polémicos realizadores de cinema dos anos 90. Fiel a si mesmo, na entrevista que, para a Electra, concedeu ao jornalista Andrea Prada Bianchi, acontecimento raro, pois não gosta de dar entrevistas, fala dele e do mundo actual, com aquele tom intencionalmente provocatório e chocante que o caracteriza , e que se torna para muitos inaceitável. Andrea Prada Bianchi é italiano, vive em Nova Iorque, tem feito reportagens em todo o mundo e já colaborou, entre outros, com The Guardian, Le Monde, Foreign Policy, National Geographic. A convite de Kusturica, encontrou-se com ele no festival de cinema de Küstendorf, na Sérvia, e conversaram durante uma inesquecível viagem de carro, aqui narrada como se fosse numa novela.

Nema vise sunca [O sol já não existe]
Nema vise meseca [A lua já não existe]
Nema tebe, nema mene [Não existes, não existo]
Niceg vise, nema joj [Já nada existe, oh, não]
Dentro da guarita, o guarda de fronteira começa a rir-se e depressa recebe a companhia de outros colegas para o concerto improvisado. É a canção principal de Underground: Era uma vez um país, o filme mais famoso de Kusturica, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 1995. Todos ali a conhecem. O realizador faz uma pausa repentina, fingindo ter terminado. Mas quando um dos agentes está prestes a dizer alguma coisa, Kusturica recomeça a cantar com ainda mais pathos, fingindo mais tormento.
Pokriva nas ratna tama [A escuridão da guerra cobre-nos]
Pokriva nas tama joj. [A escuridão cobre-nos, oh, não.]
A ja se pitam moja draga [E pergunto-me, minha querida]
Sta ce biti sa nama? [O que será de nós?]
Mesecina, mesecina… [Luar, luar…]
Os guardas fronteiriços — que, como muitos outros, o tratam por «Professor» (durante um curto período, ensinou realização de cinema na Universidade de Columbia, em Nova Iorque) — desatam a rir e deixam- -no passar sem exigir o passaporte. «Sempre que atravesso a fronteira, canto», diz Kusturica, que nasceu em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, em 1954, e que é agora cidadão sérvio. «Mas não lhes dou os meus documentos. Uma vez tive uma discussão com um bósnio-croata [os quais falam um dialecto diferente dos servo-croatas] que me pediu os documentos: “A tua língua não é a minha, não te compreendo.
Não vês televisão? Sabes quem sou, por isso não me obrigues a parar!”» São palavras objectivamente arrogantes, mas é difícil não rir ao ouvi-lo dizer isto na escuridão do banco traseiro, de onde também faço as minhas perguntas.
A fronteira não parece ter grande importância para Kusturica. Nos últimos vinte anos, construiu duas pequenas vilas de ambos os lados: Küstendorf, na Sérvia, e Andrićgrad, na Bósnia. O nome desta segunda vila é uma homenagem ao seu herói de toda a vida, Ivo Andrić, vencedor do Prémio Nobel da Literatura. O da primeira homenageia Kusturica. Para esta entrevista, convidaram-me a ir a Küstendorf para assistir ao festival de cinema homónimo que o realizador organiza há dezoito anos. Depois de esperar três dias, disseram-me que a entrevista teria lugar no carro, na viagem de quarenta e cinco minutos de Andrićgrad (onde passámos o dia) até Küstendorf. «Detesto entrevistas e raramente as dou», diz-me antes de entrar para o carro com o seu motorista. Mas, na verdade, assim que começamos a conversar com ele, é difícil interrompê-lo.
«Putin? Adoro o Putin, e é por isso que me odeiam na Europa.» Kusturica é claramente alguém com muito para dizer sem se importar de soar controverso. Outrora um prodígio do cinema dos Balcãs, desenvolveu ao longo dos anos uma identidade caleidoscópica e indecifrável, misturando a cultura romani, um sentimento antiglobalização, o orgulho eslavo e, por fim, um absoluto putinismo. Esperava algumas das suas respostas, mas não antecipei que ele se lançasse em desvarios em todas as perguntas que lhe fiz.
"Outrora um prodígio do cinema dos Balcãs, desenvolveu ao longo dos anos uma identidade caleidoscópica e indecifrável, misturando a cultura romani, um sentimento antiglobalização, o orgulho eslavo e, por fim, um absoluto putinismo."
Esta não é a primeira vez que me encontro com Kusturica. Cruzei-me com ele em 2017, durante umas férias na ilha grega de Sifnos. Não me atrevi a incomodá-lo, mas pedi à minha namorada que me fotografasse com ele em segundo plano. Na altura, não estava a par do percurso político que o realizador iniciara. Na minha infância, o meu pai pôs-me a ver os seus filmes — especialmente Gato Preto, Gato Branco e Maradona por Kusturica —, e quando o encontrei na Grécia (onde tem uma casa de Verão), eu não passava de um admirador incondicional. Foi apenas no ano passado que deparei com um vídeo em que ele conversa com Vladimir Putin durante um encontro privado no Kremlin, em Abril de 2024. O que aconteceu ao realizador rebelde que eu recordava dos meus tempos de infância?
Nos anos 80 e 90, Kusturica era a estrela em ascensão do cinema europeu. Ainda é dos poucos cineastas premiados duas vezes com a Palma de Ouro (O Pai Foi em Viagem de Negócios, em 1985, e Underground, em 1995). Também recebeu o prémio de Melhor Realização em Cannes, em 1988, com O Tempo dos Ciganos, dois Leões de Prata em Veneza (Lembras-te de Dolly Bell?, em 1981, e Gato Preto, Gato Branco, em 1998), um Urso de Prata em Berlim, por Arizona Dream, em 1993, e uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, por O Pai Foi em Viagem de Negócios. Aclamado como «o herdeiro de Fellini», assumiu a cadeira de realização em Columbia no lugar de Miloš Forman no início dos anos 90. O seu melhor amigo era Johnny Depp — na altura, ainda uma superestrela imaculada —, de cuja filha é padrinho. Em suma, vivia uma vida abençoada pelo reconhecimento ocidental. Como é que um intelectual prolífico — que viveu em Nova Iorque e em Paris, elogiado e premiado em todos os grandes festivais de cinema, e cujos filmes sobre a cultura romani transpiram um amor pela liberdade que raia a anarquia —, como é que alguém como Kusturica acabou na corte de Putin?
Na viagem de carro entre Belgrado e Küstendorf, torna-se claro que já não estamos no Ocidente ou, pelo menos, que há algo que fica para lá do Ocidente. Mesmo à saída do aeroporto, um mural num viaduto ostenta as palavras «Kosovo é Sérvia». Bandeiras sérvias ladeiam a estrada para a capital ao longo de quilómetros. A auto-estrada para a fortaleza de Kusturica, a três horas de viagem, tem o nome de «Miloš, o Grande», e de repente apercebo-me de que não sei muito sobre este lugar.
Passadas as planícies à volta de Belgrado, a estrada começa a subir por desfiladeiros até às montanhas do sudoeste da Sérvia, onde em 2004 o realizador construiu o cenário para o seu filme A Vida É Um Milagre. Mais tarde, o cenário tornou-se Küstendorf — também chamada Drvengrad (vila da madeira) e Mećavnik —, povoação que Kusturica expandiu ao longo dos anos, tornando-a uma vila/resort sérvia tradicional com cerca de trinta construções em madeira empoleiradas na encosta de uma colina. Aí se encontra o pequeno anfiteatro Gavrilo Princip, dois cinemas, dois restaurantes, uma piscina, alguns bares e dois campos de ténis. Vistas da praça principal, a villa de Kusturica e uma igreja ortodoxa, com um campanário, são o ponto alto da povoação. «Quem agora não tem casa já não vai construí-la», citação de Rainer Maria Rilke, surge no site de Küstendorf, à qual Kusturica acrescenta: «E eu acredito que quem tinha uma casa e a perdeu vai recuperá-la.» É aqui, nas «montanhas livres da Sérvia», que tem vivido desde que decidiu não regressar à sua cidade natal, Sarajevo, após as guerras da Jugoslávia.

"Dizem-me muitas vezes que alguém que dá o seu nome a uma vila tem de ser narcisista. Ainda não estive com ele tempo suficiente para perceber se o é. Mais do que de si próprio, o seu território é a celebração de um Olimpo pessoal."
Dizem-me muitas vezes que alguém que dá o próprio nome a um local tem de ser narcisista. Ainda não estive com ele tempo suficiente para perceber se o é. Mais do que de si mesmo, o seu território é a celebração de um Olimpo pessoal. As praças principais têm os nomes de Ivo Andrić, Abbas Kiarostami e Nikola Tesla. Estão ligadas por ruas e vielas dedicadas a Ingmar Bergman, Federico Fellini, Ernesto Che Guevara, Novak Djokovic, Bruce Lee, entre outros. Enormes retratos de Yuri Gagarin, Diego Maradona e Fidel Castro estão estampados, lado a lado, na parede de uma casa. Um mural de Fiódor Dostoiévski ladeia um pequeno bosque. É neste local que, desde 2008, Kusturica organiza o festival de cinema de Küstendorf.
«De início, era muito mais pequeno, tinha apenas algumas casas», diz Edoardo De Angelis, realizador italiano que ganhou o Prémio da Crítica na primeira edição do festival e que agora faz parte do júri. «As empresas mineiras queriam explorar este terreno rico em níquel, mas ele conseguiu transformá-lo numa zona protegida. Nessa altura, o festival era muito mais agreste, com mais bebida e uma companhia, digamos, menos “convencional”.»
Hoje, o público é uma mistura de cineastas de nicho, jovens autores, jornalistas de esquerda, jornalistas comunistas, habitantes locais, estudantes de cinema, turistas chineses, jovens que gostam de festa e o círculo mais próximo de Kusturica. Os convidados e os concorrentes do festival vêm de todo o mundo, mas as nacionalidades mais representadas são, de longe, a sérvia e a russa. Os organizadores pagaram as viagens e o alojamento da maioria dos convidados (incluindo a minha). Apenas não pagam as bebidas, e bebe-se bastante. O centro nevrálgico de Küstendorf é o restaurante e o seu buffet, em que as pessoas fumam nas mesas e pedem vinho e rakija. Kusturica tem a sua própria mesa, maior, para os amigos e convidados de honra. Os menos conhecidos aguardam um momento favorável para trocar uma ou duas palavras com o Professor. Fala-se muito de cinema, de arte e da Sérvia. Muito menos sobre a Rússia, Putin e a Ucrânia. Toda a gente conhece as posições políticas de Kusturica e ninguém quer ser um desmancha-prazeres.
«Encontra-o numa boa altura», diz De Angelis, cujo filme Comandante abriu o Festival de Veneza em 2023. «Há dez anos, ter-lhe-ia dado um minuto para a entrevista.» Entre os convidados anteriores estão Abbas Kiarostami, Alfonso Cuarón, Matteo Garrone, Matt Dillon, Paolo Sorrentino, Jim Jarmusch e Johnny Depp, o amigo de Kusturica. A estrela desta edição é Yura Borisov, o actor russo nomeado para o Óscar de Melhor Actor Secundário por Anora, filme vencedor da Palma de Ouro em 2024 e do Óscar da Academia para Melhor Filme já em 2025. Entre os vivas e os aplausos de fãs de Borisov (principalmente russos), Kusturica anunciou que o actor será o protagonista de um filme que ele está a preparar.
No dia seguinte, no nosso carpool karaoke improvisado na fronteira entre a Bósnia e a Sérvia, o realizador fala entusiasticamente de Borisov; reserva menos elogios para Anora e a Palma de Ouro. «É merda dourada. Repleta de coisinhas bonitas», diz sobre o prémio que recebeu duas vezes agora atribuído a um filme que passou no seu próprio festival. «Hoje, a Palma de Ouro é dada a um tipo por causa de um filme cheio de cenas de sexo ou lá o que for [refere-se a Anora]. Mas não tem amor. Apenas sexo. Por isso, não há ali filme nenhum. Sou cristão, e enquanto cristão preciso que o cinema me mostre amor.»
Como o seu nome próprio sugere, Emir Kusturica nem sempre foi cristão. Nasceu no seio de uma família muçulmana secular, e o pai, Murat, trabalhava no Secretariado de Informação da Bósnia Socialista, parte da antiga Jugoslávia. O jovem Emir cresceu em Sarajevo, num bairro de «funcionários públicos, militares e ciganos pobres». A religião não era um aspecto importante na família: o muçulmano Murat costumava dizer o Pai-Nosso em latim para calcular o tempo de cozedura dos ovos: a versão longa da oração para os bem cozidos, a curta para os ovos à la coque. Embora tenha posto de parte a devoção religiosa, Emir herdou do pai o gosto pela política. Murat e os amigos eram, na sua maioria, partidários jugoslavos ligados à União Soviética e à memória da libertação do nazismo. Apesar da sua fé na Jugoslávia, Murat não escondia o desprezo por Tito, e a mulher repreendia-o por estar constantemente a falar de política e a beber. O próprio Emir gostava de escandalizar os clientes dos bares insultando o Estado e o seu líder.
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