Assunto
A civilização do livro e da literacia profunda
Adam Garfinkle

Em 2020, Adam Garfinkle, ensaísta e politólogo americano, publicou um artigo na National Affairs que tinha como título «The erosion of deep literacy». Foi sobre a questão da «literacia profunda» que convidámos o antigo editor da revista The American Interest a escrever este ensaio para a Electra.

Um livro, seja de que tipo for ou a sua forma física, é uma coisa, um mero objecto material; mas não é apenas uma coisa. Um livro pressupõe um conjunto de processos recursivos entrelaçados e integrados na cultura humana; um conjunto intrincado e de vasta importância sociocultural.

Ao longo de milhares de anos, os livros têm tido na nossa vida colectiva uma presença única que assume inúmeras formas, demasiadas para listar num simples ensaio. Bastará dizer que, na sua extensa diversidade e nas suas variadas formas físico-técnicas, desde o pergaminho até ao códice e agora aos ecrãs, os livros transformaram a consciência que os humanos têm de si mesmos, a organização socioeconómica e a vida política. Isto aconteceu porque a literacia profunda, o processo dialéctico que traz os livros à existência para serem lidos e para desencadearem as suas ondas históricas, remodelou os circuitos do próprio cérebro humano.1 A revolução epigenética do cérebro, que teve lugar na mente humana, fez disparar um motor generativo de transformação cultural, de que os livros são o símbolo preeminente enquanto produtos e principais contribuidores.

É claro que nem toda a leitura é profunda e que nem toda a leitura profunda envolve livros. Ler listas, menus e placas de rua — tudo o que dispensar verbos — não é leitura profunda. Ler ensaios sérios considera-se leitura profunda, mas mesmo colectâneas de ensaios em publicações volumosas são simples pontões quando comparados com os livros que formam verdadeiras pontes entre escritor e leitor. Henry Kissinger citou um ensaio escrito por mim em 2020 para explicar a essência deste processo: o leitor aborda «um escrito extenso de maneira a antecipar a direcção e o significado que lhe dá o seu autor»2, aplicando os próprios recursos nessa tarefa silenciosa e fisicamente distante.

Os livros obrigam-nos a formar conceitos, a treinar a mente para estabelecer relações… Um livro é uma grande construção intelectual; não é fácil abarcá-lo todo na mente de uma só vez. É preciso fazer um esforço mental para o interiorizar.3

Kissinger teria acrescentado, se lho tivéssemos perguntado, que o mesmo se aplica à disciplina necessária para escrever uma argumentação sustentada. Naturalmente, à medida que os saudáveis hábitos de leitura profunda se degradam, também se perdem os hábitos fundamentais para uma escrita expositiva eficiente. Tenho também a certeza de que Kissinger teria concordado quando Pablo Picasso disse: «Os computadores são inúteis. […] Só conseguem dar respostas.» Ambos sabiam que os livros não se limitam a dar respostas; muito mais importante é o facto de incubarem boas perguntas, sem as quais as respostas são, de facto, na sua maioria inúteis.

A recursividade inerente a tudo o que tem que ver com livros é crucial para aquilo que eles são e fazem. Quando um leitor lê um livro, completa o trabalho iniciado pelo autor, transformando o livro numa jóia dialógica transitiva que une leitor e escritor numa relação dialéctica transtemporal, tão pouco natural quanto espantosamente fértil. Só com os livros poderiam os humanos experienciar diálogos coerentes entre gerações e continentes. Através dos livros desincorporámos a linguagem das limitações da oralidade, acto que pressupõe uma facilidade progressiva do raciocínio abstracto. Com a mais moderna e flexível estrutura cerebral desenvolvida ao longo dos últimos seis mil anos, alcançámos coisas que os nossos antecessores pré-letrados não podiam sequer imaginar. Muito mais do que os Descobrimentos, as conquistas e o comércio de longa distância, foram os livros que nos permitiram integrar horizontal e verticalmente a experiência da espécie humana, ou seja, no espaço e no tempo.

Se mudarmos o foco e olharmos para dentro e não para fora, descobrimos que a literacia também moldou a nossa autoconsciência, legando-nos um sentido de interioridade adulta. Foi o que quis dizer David Riesman quando observou em The Lonely Crowd (1950): «Estar só com um livro é estar só de uma maneira nova.» Foi também o que notou Marcel Proust em Sobre a Leitura (1905), quando a descreveu como «aquele fértil milagre de comunicação que ocorre no seio da solidão».

Mas não estamos totalmente sós quando lemos em profundidade, sobretudo se se tratar de uma obra de ficção. Estamos com o autor e especialmente com as suas personagens quando somos absorvidos pela leitura, isto é, na forma como nos dedicamos a ela, para citar William James. Ao lermos um romance sobre uma mulher desesperada a galope pelos campos numa noite sem luar, não nos limitamos a captar o conteúdo literal e lexical da história, também as nossas emoções entram em erupção pela adrenalina que nos faz subir a pulsação e a frequência respiratória até aos níveis que julgamos que a nossa intrépida heroína está a experienciar. Como é que o fazemos? Como é que uma história imaginada num lugar e num passado distantes por alguém que nunca vimos, e que entra nas nossas cabeças por via de meros símbolos em tinta impressa sobre uma página, é capaz de tomar de assalto os nossos sistemas límbicos e endócrinos?

"A leitura profunda integra o cérebro, potenciando a sua complexa estrutura de seis camadas como nenhuma outra actividade humana."

Aqui está uma boa questão para ser respondida: é um facto neurocognitivo que quando lemos usamos sobretudo o nosso sentido visual, em especial se, como é comum, o fizermos em silêncio. Vemos as palavras na página ou no ecrã (ainda que ler num ecrã não seja o mesmo que ler numa página impressa4), mas o que vemos é uma progressão de símbolos criados pelo homem cujo propósito fundamental é o de capturar a linguagem oral. A leitura é, portanto, um híbrido único entre os nossos sentidos visual e auditivo, e essa hibridização revela-se aos cientistas cognitivos no modo como os nossos cérebros se activam de forma mais integrada quando lemos do que quando apenas olhamos para algo que não a linguagem escrita ou do que quando apenas ouvimos. É assim que podemos ler sobre sons inexistentes e senti-los afectar as nossas funções motoras tal como se os tivéssemos escutado.

A leitura — e aqui inclui-se a decifração da notação musical, assim como a dos símbolos matemáticos «desprovidos de som» ou dos desenhos esquemáticos usados por arquitectos ou engenheiros eléctricos — é portanto um sobreestímulo para uma consciência integrada. Como sugeriu Ezequiel Morsella, ler uma só palavra não é, de todo, «um processo trivial [...]. Uma única palavra escrita pode, de forma fiável e impossível de suprimir, activar dois tipos de representação mental (visual e auditivo), que envolvem duas zonas do cérebro e produzem dois conteúdos separados na consciência, cada um activado de forma irreprimível»5.

A leitura profunda, em particular, integra o cérebro, potenciando a sua complexa estrutura de seis camadas como nenhuma outra actividade humana. Fá-lo ao cérebro individual, ao cérebro social e provavelmente ao cérebro humano ao longo do tempo, por meio de filtragem e adaptações culturais. A revolução epigenética no cérebro humano que originou a literacia em massa impulsionou-nos enquanto espécie que se completa a si mesma, ou «autogénica», para usar um termo da fenomenologia. «A vida social incorpora e cristaliza em si mesma as concepções que temos dela», escreveu Erving Goffman. É evidente que o reservatório de concepções à nossa disposição para incorporar e cristalizar foi-se expandido exponencialmente pela literacia, pelos livros.

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

 

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

© Bodleian Libraries, University of Oxford, Oxford

 

"Ler livros também amplia a nossa mentalidade e capacidade empática. É por isso que uma cultura letrada possui um potencial de cooperação humana vedado a culturas pré-letradas, iletradas ou de literacia perdida."

Mesmo num simples ensaio é fácil ilustrar o argumento de Kissinger sobre os benefícios superiores dos livros. Por exemplo, não há dúvida de que ler livros exercita a nossa autodisciplina, paciência e atenção. Desenvolve também o nosso sentido de sequencialidade, o que nos permite formar linhas temporais de um passado concreto e, com maior eficácia, planear o futuro com criatividade e imaginação, quer enquanto indivíduos, quer em cooperação com os outros.

Ler livros também amplia a nossa mentalidade e capacidade empática. É por isso que uma cultura letrada possui um potencial de cooperação humana vedado a culturas pré-letradas, iletradas ou de literacia perdida. Na verdade, sem literacia profunda e sem os livros produzidos pelo processo de comunicação intergeracional através dela, não podemos imaginar um conceito abstracto da História, e portanto nada podemos aprender sobre o passado que nos possa socorrer no futuro. Sem livros não se formariam escolas, bibliotecas ou arquivos, nem nenhum dos artefactos culturais por meio dos quais preservamos e expandimos o conhecimento na ciência e nas humanidades. Sem literacia e uma vida de aprendizagem permanente não desenvolvemos, compreendemos ou recorremos a abstracções: não só não pode haver História sem livros, como nem sequer seria possível existir o conceito de «humanidade».

Ler também afecta o tipo e a capacidade da memória, moldando assim a identidade; tal como foi sugerido, a literacia profunda é a grande fonte de desenvolvimento do nosso sentido de interioridade. Como?

A comunicação oral agrupa as pessoas, enquanto a escrita e a leitura, nas palavras de Walter Ong, «lançam a psique sobre si mesma»6 e, como tal, cultivam a individualidade. A literacia fornece uma imagem mediada do Eu, reflectida sobre a consciência da própria pessoa, de tal maneira que esta se torna simultaneamente sujeito e objecto. Ler e escrever formam uma espécie de espelho que permite a cada um ver-se de perto, atentamente, mais ou menos quando quiser e ao ritmo que desejar. A auto-reflexão possibilitada pelas páginas de um livro leva a uma consciência filosófica mais profunda. Foi e é assim que continuamos a adicionar texturas e nuances à nossa mentalidade.

Sem este cultivo da individualidade não poderíamos ter alcançado a modernidade, no centro da qual está a elevação da acção individual sobre a colectiva. Sem isso não poderia ter surgido o liberalismo clássico, ou a democracia, ou a união de ambos na democracia liberal. Sem os livros e a cultura letrada por eles possibilitada, também não conseguiríamos sustentar instituições públicas em harmonia com a razão humana. Porquê? Porque a sintaxe lógica da oralidade difere da literacia.

A oralidade privilegia a emoção quando comparada com as formas escritas de comunicação, pelo que só numa cultura política baseada na escrita e centrada no livro é possível garantir protecção contra a demagogia, a disseminação de teorias da conspiração e a regressão para o autoritarismo e a tirania. É preciso também lembrar: foram acima de tudo os livros, na forma dos samizdat7, que mantiveram acesa a chama da liberdade durante o pesadelo totalitarista que cobriu a Europa de Leste e a Rússia durante mais de meio século. Não foi, como os marxistas costumavam dizer, uma coincidência.

[...]

1. Cf. Maryanne Wolf, Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World, Nova Iorque: HarperCollins, 2018.
2. Henry Kissinger, Leadership, Londres: Penguin Random House, 2022, p. 405; a citação provinha de «The erosion of deep literacy», National Affairs, Primavera de 2020.
3. Henry Kissinger citado em Charles Hill, Grand Strategies, New Haven: Yale University Press, 2010, p. 298. Hill usa esta observação de Kissinger como conclusão do livro, uma consideração fornecida directamente ao autor. Ambos se relacionavam desde os tempos do Departamento de Estado dos EUA e durante muitos anos depois disso. Tive o privilégio de os conhecer.
4. Sobre as diferenças neurocognitivas entre a leitura em formato impresso e digital, ver Anne Mangen e N. S. Baron, «Student perceptions and practices when reading in print and digitally: An evolving saga», C. E. Loh (ed.), The Reading Lives of Teens: Research and Practice, Londres: Routledge, 2024.
5. Ezequiel Morsella, «The power of the written word», Psychology Today, 21.12.2023.
6. Cf. Walter J. Ong, Orality and Literacy: The Technologizing of the Word, Londres: Methuen & Co., 1982.
7. Prática individual que consistia na cópia e subsequente distribuição de textos clandestinos. (N. do T.)