Um livro, seja de que tipo for ou a sua forma física, é uma coisa, um mero objecto material; mas não é apenas uma coisa. Um livro pressupõe um conjunto de processos recursivos entrelaçados e integrados na cultura humana; um conjunto intrincado e de vasta importância sociocultural.
Ao longo de milhares de anos, os livros têm tido na nossa vida colectiva uma presença única que assume inúmeras formas, demasiadas para listar num simples ensaio. Bastará dizer que, na sua extensa diversidade e nas suas variadas formas físico-técnicas, desde o pergaminho até ao códice e agora aos ecrãs, os livros transformaram a consciência que os humanos têm de si mesmos, a organização socioeconómica e a vida política. Isto aconteceu porque a literacia profunda, o processo dialéctico que traz os livros à existência para serem lidos e para desencadearem as suas ondas históricas, remodelou os circuitos do próprio cérebro humano.1 A revolução epigenética do cérebro, que teve lugar na mente humana, fez disparar um motor generativo de transformação cultural, de que os livros são o símbolo preeminente enquanto produtos e principais contribuidores.
É claro que nem toda a leitura é profunda e que nem toda a leitura profunda envolve livros. Ler listas, menus e placas de rua — tudo o que dispensar verbos — não é leitura profunda. Ler ensaios sérios considera-se leitura profunda, mas mesmo colectâneas de ensaios em publicações volumosas são simples pontões quando comparados com os livros que formam verdadeiras pontes entre escritor e leitor. Henry Kissinger citou um ensaio escrito por mim em 2020 para explicar a essência deste processo: o leitor aborda «um escrito extenso de maneira a antecipar a direcção e o significado que lhe dá o seu autor»2, aplicando os próprios recursos nessa tarefa silenciosa e fisicamente distante.
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