Vista de Delft
Cidade do México: lembro-me
Brenda Lozano

A reconhecida escritora mexicana Brenda Lozano, autora do romance Cuaderno ideal, escreve, nesta «Vista de Delft», sobre a Cidade do México. Inspirando-se no livro Je me souviens, de Georges Perec, a autora usa a anáfora «Lembro-me», numa repetição obsessiva, iniciadora e iniciática, dando à evocação da cidade onde nasceu, e da sua vida nela, um tom encantatório de nostalgia e reconhecimento.

Lembro-me dos verões sempre chuvosos da Cidade do México. Chove sempre no meu dia de anos.

Lembro-me da Cidade do México quando penso nos edifícios dos anos 70 com mosaicos coloridos nas fachadas formando figuras geométricas, quando vejo chão de parquê e persianas de bambu, e lembro-me da Cidade do México quando penso no som das batatas-doces aos domingos à noite. Quando num domingo à noite passou o carrinho das batatas-doces, um amigo disse que aqueles eram os sinos do Apocalipse.

Lembro-me dos sons da rua: o gás, a sineta do camião do lixo pelas manhãs, o amolador de facas, os ferrinhos de um senhor idoso que vende barquilhos e obreias em Escandón, o som dos aviões que passam regularmente ao fundo, o barulho dos carros no Viaducto, de repente, um reboque, o estrondo de um camião de carga. A gravação «Coooompram-se colchões, tambores, frigoríficos, fogões, máquinas de lavar roupa, micro-ondas ou qualquer ferro-velho que queiram vender»…

Lembro-me dos esquites1 aos domingos na praça de Coyoacán. Quando era criança, adorava os domingos de esquites. Sem maionese ou pimenta, apenas sal e limão, por favor.

Lembro-me de ensinar uma amiga gringa que veio viver para a Cidade do México a pronunciar chido, chale, chingón, órale, híjole e no mames2, dando exemplos de como se utilizam algumas palavras do repertório básico. Também lhe ensinei a perguntar: Onde fica o OXXO?3

Lembro-me do Hino Nacional aos domingos à meia-noite em todas as estações de rádio, fora de tempo, dessincronizados em fragmentos, como entre espelhos.

Lembro-me de ouvir a música de Rockdrigo, com minis e Cheetos, no estúdio de um amigo artista, enquanto ele pintava uma águia a devorar uma serpente.

"Lembro-me do Hino Nacional aos domingos à meia-noite em todas as estações de rádio, fora de tempo, dessincronizados em fragmentos, como entre espelhos."

Cabeça colossal de São Lourenço Tenochtitlan, c. 1200–900 a.C. © Fotografia: Scala, Florença / Museo Nacional de Antropologia, Cidade do México

Cabeça colossal de São Lourenço Tenochtitlan, c. 1200–900 a.C. © Fotografia: Scala, Florença / Museo Nacional de Antropologia, Cidade do México

 

Lembro-me de umas velas grandes de cera preta com a figura de Coatlicue4, que comprei pelo Instagram.

Lembro-me de cantar «Hasta que te conocí», de Juan Gabriel, num karaoke em Queens, com a sensação de estar a inventar o castelhano e o despeito.

Lembro-me de quando um graffiti na linha N do metro de Nova Iorque, convertida em Ñ, me sussurrou alguns segredos sobre o castelhano num país onde se fala inglês. Lembro-me de ter percebido muito rapidamente que o meu castelhano é muito chilango5.

Lembro-me de quando li um poema mexicano a uma amiga argentina numa viagem de metro e um dominicano no banco de trás perguntou se aquela coisa tão bonita também era castelhano.

Lembro-me da vez em que fui ao Dia dos Mortos em Tupátaro, Michoacán, e descobri que nos cemitérios cobrem com recortes de papel os vivos que aparecem nas fotografias, para que a morte não os leve.

Lembro-me de uma banca no mercado de Narvarte onde costumava comprar velas. Vendiam ervas, velas e feitiçarias. Havia uma cortina de pano e, por trás dela, uma mulher lia o baralho espanhol, fazia limpias6 e às vezes comia guisados com uma colher de um prato fundo, tinha uma pequena televisão a preto-e-branco quase sempre ligada, e chamava-se Tere. Uma vez ofereceu-me uma vela para que pedisse um desejo. Pede o que quiseres, mija7, e vai concretizar-se.

[...]

1. Comida típica mexicana feita à base de milho cozido que se vende na rua e em mercados locais. (N. do T.)
2. Com excepção de chale, que é o nome depreciativo que os mexicanos dão a pessoas originárias da China ou com traços orientais, todas as outras palavras são coloquialismos ou interjeições com equivalentes em português, como «fixe», «porreiro», «ora bem!», «caraças!», «porra!», etc. (N. do T.)
3. Cadeia de supermercados mexicana. (N. do T.)
4. Mãe dos deuses e deusa da vida e da morte na mitologia asteca. (N. do T.)
5. Termo coloquial com que se designam os naturais da Cidade do México ou tudo o que com ela se relacione. (N. do T.)
6. Espécie de exorcismo. (N. do T.)
7. Abreviatura de mi hija, minha filha. (N. do T.)